terça-feira, 5 de março de 2013

Fernão de Magalhães - Mensagem




 FERNÃO DE MAGALHÃES
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto —
Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.


Fernando Pessoa



Este poema refere-se à viagem de circum-navegação, iniciada por Fernão de Magalhães e terminada pelo basco Sebastián Elcano, após Magalhães ter sido morto, em combate, por nativos de uma das ilhas do arquipélago filipino.
Fernão de Magalhães passou pelo estreito, hoje conhecido como Estreito de Magalhães, onde viveu durante algum tempo. Navegou pelo Oceano Pacífico, tendo perdido uma boa parte da sua tripulação, assistiu a revoltas dos marinheiros, ao naufrágio de três dos seus navios. Passou  fome, sede, e doenças (escorbuto). Quando chegou às Filipinas-Cebu, Fernão de Magalhães iniciou trocas comerciais e foi muito bem recebido e acolhido pelo chefe local. Este, por sua vez, andava em guerra com o chefe local de Mactan e foi ao ajudá-lo numa batalha que Fernão de Magalhães perdeu a vida.


O sujeito poético, neste poema, não se refere directamente aos feitos de Fernão de Magalhães, mas aborda apenas um momento da sua vida, a sua morte. Trata-se da materialização da  ideia de Fernando Pessoa - uma vida sem sonho não vale a pena e  só no momento da morte é que se podem contabilizar as valias de cada vida.
Na primeira estrofe do poema, descreve-se um ritual, feito pelos nativos, festejando a morte do marinheiro. Esta descrição apresenta-nos a caracterização de todo o ritual e festejo dos nativos  e do espaço onde se passa a acção, um vale.
Na segunda estrofe, o sujeito lírico refere-se aos nativos como “Titãs”. Estes eram seres míticos, considerados selvagens, antigos deuses da terra que, na mitologia grega, antecederam os deuses do céu. Nesta estrofe, o sujeito poético volta a referir a dança, o ritual em “honra” da morte de um marinheiro que merecia ser glorificado, Fernão de Magalhães. Este é caracterizado como o “Primeiro” dos homens, que se cingia, protegia e pretendia ser leal àquele que o acolheu naquelas terras (Cebu). No último verso, o marinheiro  aparece “Na praia, ao longe, sepultado”.
Na terceira estrofe, o sujeito lírico refere mais uma vez o festejo após a morte de Fernão de Magalhães, por parte dos nativos que o assassinaram, mas desta vez com desprezo:

“Nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada”

Assim, a força e bravura deste marinheiro influenciou o espírito de toda a armada. Este destemido marinheiro ficou na memória de todos. O seu espírito nobre e heróico, os seus grandes feitos fizeram com que ficasse na História. Os nativos, ignorantes, não reconhecem estes feitos e festejam como se nada fosse.
Na quarta e última estrofe afirma-se que Fernão de Magalhães “Violou a Terra”. Com a sua bravura, determinação e coragem rompeu todas as barreiras, uniu o que estava separado, encheu-se de conhecimento e deu-o ao mundo. O sujeito lírico demonstra, mais uma vez,  desprezo pelos nativos: são ignorantes, que não reconhecem a importância dos feitos daquele que mataram.
“Dançam na solidão” – estão sós, presos à ignorância, não têm saber. E dançam, festejando.
Por último, é feita uma referência aos “Mudos montes” que rodeiam estes nativos. Aqui, podemos interpretar “mudos montes”, como a falta de sabedoria e a ignorância que rodeia os nativos. Estes estão rodeados de nada. E por isto, festejam.

Simbolicamente, os seres da terra dançam  e festejam a morte daquele que, concluindo o sonho do Infante, a rodeou, tornando-a una e rasgando o último mistério (violando a Terra). E doravante já ninguém, mesmo vivendo numa ilha remota, estará isolado. A Terra vingou-se da violação, através dos seus "filhos", com a morte do navegador. Mas eles não sabem que aquele que mataram acabou com o seu isolamento geográfico e porque não o sabem mantêm-se na solidão da ignorância. E a Terra, enfim desvendada para o Ocidente, é muda para eles...

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