domingo, 5 de fevereiro de 2012

Nevoeiro - Fernando Pessoa - Mensagem



Nevoeiro


Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer –
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ância distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!


Este é o último poema da "Mensagem", pertencendo à parte designada "O Encoberto", que fecha o ciclo da vida da Pátria, mas em que se pressente o gérmen sebastianista, o anúncio de um novo ciclo e a recuperação de energias latentes para a constituição próxima de um Quinto Império, um "reino de liberdade de espírito e de redenção. Diante dos homens ergue-se ainda uma aventura de espírito poderosa e inesperada. É a partida e a busca de uma nova Índia, que não existe no mapa, no espaço, e que jaz para além de toda a temporalidade , pois que só será alcançada por navios tecidos de sonho". Por isso é que, sendo Portugal nevoeiro, o poeta exclama: "É a hora!". No "nevoeiro", no "incerto e derradeiro", quando "tudo é disperso e nada é inteiro", a exclamação final é mobilizadora, chama a atenção para o facto de ser esse, precisamente, o momento em que tudo começa, em que tem de começar a construir-se uma Nova Realidade, diferente e melhor, mais além.

O título do poema e o seu último verso (Ó Portugal, hoje és nevoeiro"), na sua dimensão metafórica, caracterizam uma situação de crise que se perfila em várias modalidades:

  • Crise política: "Nem rei nem lei";
  • Crise de valores: "Ninguém conhece que alma tem / Nem o que é mal nem o que é bem".
  • Crise de identidade: "Brilho sem luz e sem arder, / Como o que o fogo-fátuo encerra"; (aqui com o recurso a uma comparação bastante expressiva). Outro exemplo: "Tudo é incerto e derradeiro / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro"...
A descrição desta situação de ruína, que é, sobretudo, moral, abrange todo o poema excepto a interrogação do quarto verso da segunda estrofe, apresentada, em destaque, entre parênteses ("Que ânsia distante perto chora?") e a exclamação do último verso do poema, destacada também, isolada, a fazer lembrar uma finda medieval, mas a ser, mais do que uma síntese do poema, a tradução do salto em frente que é preciso dar. Se a situação é crítica não deixa de ter virtualidade: esta exclamação funciona como um recado, uma mensagem.
Tem, portanto, o poema duas faces: uma voltada para a crise presente e outra que prenuncia uma redenção. Quando se pergunta - "Que ânsia distante perto chora?" - isso significa que a ânsia, indispensável para a busca e o encontro, embora distante, não morreu, ela chora perto. Está viva. O último verso - "É hora!" - vem abrir-lhe a porta da Índia Nova e imaterial dum Novo Império. A ânsia foi determinante nas Descobertas. Também o é agora no Novo Mundo a achar.
Pelo contrário, na maior parte do poema, naquela que tipifica uma situação de decadência, as frases são declarativas. Os verbos estão no presente, sugerindo permanência, arrastamento ou continuidade, sendo de realçar a frequência da utilização do verbo ser. Em Fernando Pessoa, é o problema do ser tanto o de Portugal como o de si próprio, aquele que mais o aflige.
De salientar a frequência das palavras negativas ou de sentido negativo:
  • "nem" (quatro vezes no primeiro verso e duas no nono, repetida em diácope, isto é, com outras palavras de permeio, e contribuindo decisivamente para caracterizar, logo de início, uma situação de inércia e marasmo);
  • "ninguém" (duas vezes e a constituir uma anáfora, no princípio dos dois primeiros versos da segunda estrofe);
  • "sem", repetida no quinto verso da primeira estrofe, contribuindo para adensar o sentido dum verso paradoxal, em que o oxímoro desempenha, como em todo o texto, um papel fundamental: "Brilho sem luz e sem arder";
  • outra palavra negativa muito importante no texto é "nada" (décimo segundo verso), sobretudo, porque em antítese com "tudo", anaforicamente repetido nos décimo primeiro e décimo segundo versos;
  • e ainda palavras ou expressões antitéticas, como: "guerra", "fulgor baço", "entristecer", "fogo-fátuo", Que ânsia distante perto chora?", "incerto e derradeiro", "disperso", "nevoeiro".
De notar ainda o paralelismo dos sétimo e oitavo e dos décimo primeiro e décimo segundo versos.
Ao nível fónico, salientam-se alguns aspectos importantes:
  • a irregularidade métrica e estrófica;
  • a predominância do ritmo binário nos primeiro, quinto, sétimo, oitavo, nono, décimo primeiro, décimo segundo e décimo terceiro versos;
  • o facto de o décimo verso ("Que ânsia distante perto chora?" rimar com o último ("É a hora!"), estabelecendo, assim, a ponte que encontrámos na nossa análise ideológica.

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