Natural de Silves, onde nasceu a 9 de agosto de 1914, Maria Keil casou-se aos 19 anos com Francisco Keil do Amaral, que veio a tornar-se um nome fundamental da arquitectura moderna portuguesa.
Em discurso directo, Maria Keil fala da vida, do mundo, dos seus gostos e paixões, da infãncia, da chegada às Belas Artes, da opressão do Estado Novo e das prisões.
Lembro-me dos cheiros da minha infância. Figos, alfarroba, orégão. Recordo-me das gulodices, das estrelas de figo, do queijo de Maio, que era a melhor coisa do Mundo. É um queijo de figo que se faz durante o Inverno e come-se no 1.º de Maio. Não havia electricidade.
Tínhamos os candeeiros de petróleo e reuníamo-nos à volta da mesa. Contavam-se histórias de bruxas. Depois eram noites e noites a fazer o queijo. Aquilo dura até Maio. No dia 1 está pronto para a festa, que começa com o levantar antes do nascer do sol. Íamos para o campo. Cozinhávamos, dançávamos. Em casa havia um gramofone, que era amarrado às costas de uma mula. Não sei o que se tocava, mas há uma música de que nunca mais me esqueci. É a Lucia di Lammermoor. Aquilo era subversivo. Era uma coisa com tradições que vinham não sei de onde, dos corticeiros. Depois acabou, porque desmantelaram as fábricas. Lembro-me de vir à janela ver o enterro de um soldado que tinha sido morto na Guerra.
Silves era um centro corticeiro terrível, revolucionário. Havia encontros com a polícia e greves. Os operários sentavam-se nos passeios e vinham os patrões descarregar a cortiça. Havia archotes acesos nas janelas. Aquilo era tão extraordinário, tão revolucionário, que o Salazar fechou as fábricas todas. Abriu-as noutros pontos do país. Fecharam as fábricas e foi uma miséria. Era uma terra rica. Tinha um cais de desembarque mesmo em Silves, na cidade. Tudo isso desapareceu. O meu pai tinha uma fábrica de cortiça e também foi um dos afectados. O negócio da cortiça acabou. Agora há lá aquela fábrica do inglês, transformada em museu. Os corticeiros de Silves eram um terror.
Tive uma infância muito má
Não sei cozinhar. Sinto-me inábil. Não tenho jeito nenhum para conviver com as pessoas. É uma desgraça. Vivo sozinha. Às vezes apetece-me ir à rua, mas não vou. As pedras da calçada são sempre as mesmas. Chego à porta e estão lá as mesmas coisas todos os dias. Não muda nada. Não tenho amigos. Não convido ninguém para vir cá a casa. Não sei conviver. Tanto mais que não há convívio sem comida. As pessoas tratam-me bem, trazem-me presentes, oferecem-me bolos e eu fico envergonhadíssima, porque não sou capaz de fazer nada daquilo. Não sou feliz, por causa disso. Porque estou sempre envergonhada. Em casa onde não há pão, as pessoas não vão. Sinto-me em falta.
Talvez esta seja uma civilização da comida. Tive uma infância muito má, porque os meus pais separaram-se tinha eu três anos. Fui para casa do meu avô paterno, que era um camponês. Estive lá até aos 7 anos. Estava feliz da vida. Brincava por cima dos telhados, fazia partidas aos vizinhos. Um dia foi um homem à aldeia e levou-me para casa do meu pai. Sem dizer nada a ninguém. Fui como que raptada. Mais tarde soube que era um contrato. Aos sete anos o pai recuperava-me.
Fui para uma casa onde não havia ninguém. Apenas umas criadas velhas. Ele tinha uma fábrica de cortiça e a casa era encostada à fábrica. Fiquei ali sozinha, naquele casarão, com aquelas duas velhotas. Um dia enfiaram-me um chapéu de seda na cabeça e levaram-me para uma terra perto, onde o pai arranjara uma noiva para se casar outra vez. De repente fui parar a uma casa tão burguesa que até sufocava. Parece que ainda ouço as vozes. "As meninas aprendem piano. Endireite-me essas peúgas. Vá já lavar os braços, que estão sujos". Por isso, quando aos 15 anos vim para Lisboa, para a escola de Belas Artes, achei que tinha vindo para o céu, mas vim para outro inferno.
Fui cair na casa do irmão da minha madrasta, que era militar. Um homem horroroso. Na sala de visitas tinha o retrato do Sidónio Pais. Na minha família não havia nenhuma ligação à arte. Alguém me mandou para cá. Talvez o professor de desenho da Escola Industrial de Silves. Nunca ouvi ninguém dizer que tinha muito jeito. Naquele tempo as meninas tinham de aprender piano e francês. Aprendi piano com um senhor que ensinava às meninas todas. Mas ensinou-me de tal maneira, que nem conheço as notas. Era horrível. Tinha um lápis na mão, eu tocava e quando me enganava, ele batia-me nos dedos e dizia: "pensas que é a fazer bonecos que se ganha a vida, pensas?". Depois de casar fui para casa da minha sogra, onde fiquei toda contente. Houve um corte tão fundo com todo aquele passado. Nunca mais soube nada da minha mãe, nem nunca mais as pessoas me disseram nada. Por tudo isso, tenho a impressão que me falta um bocado cá dentro.
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Gostava de ter tido uma vida normal
A pintora e ceramista chegou a fazer parte do Estúdio Técnico de Publicidade, então formado por José Rocha |
Ana Baião |
Há coisas que não tenho consciência delas. Gostava de ter tido uma vida normal. Vim encontrar um mundo diferente. A escola não era superior e o ensino fazia-se a copiar desenhos, a copiar florões de gesso e pouco mais. Não tínhamos noção nenhuma do que era a arte cá fora e lá fora. A maior parte das raparigas queriam tirar aquelas cadeiras para irem para o professorado. Na altura só pensava tirar o curso para depois fazer qualquer coisa. Nunca tive a tentação de dar aulas. Custa-me tanto tirar partido daquilo que aprendo. Não imagino mesmo como é que se pode ensinar. Não sei ensinar. Ou sinto, ou vejo, mas explicar, é muito difícil para mim. Sei perceber, mas não sei explicar.
Fiz o primeiro ano de pintura, casei com Keil do Amaral aos 19 anos e não fiz mais nada na escola. Foi a minha sorte. Aprendi à minha custa, com as pessoas com quem ele estava, que, essas sim, sabiam. Conheciam-se todos. Faziam-se grandes tertúlias. Havia a Brasileira, cheia de mesinhas e as pessoas a conversar. Não punham ninguém na rua. Talvez eu fosse a mais nova do grupo. Discutíamos tudo, o mundo todo.
Keil do Amaral era mais velho. Conheci-o na escola. Ele vinha doutro meio. Eu vivia no meio de gente que não estava ligada à arte. O contacto com Keil do Amaral é que abre horizontes novos. Nessa altura conheci toda essa gente de que hoje se fala. O pintor Abel Manta, que era mais velho que nós. Havia alguns do Porto, também. Dantes havia uns cafezinhos no Chiado, onde podíamos estar a tarde toda com um cafezinho e a conversar. Hoje já não se pode. Faziam-se grandes tertúlias. Havia aquela parte da Brasileira cheia de mesinhas e as pessoas a conversar. Havia ali pessoas extraordinárias. Dávamo-nos muito com o Diogo de Macedo.
Foi bonito naquela altura, mas as coisas não se repetem. Temos outra idade, outra mentalidade, outro saber. Naquele tempo, o meu saber era muito pouco. Ouvia tudo. Vinha da província, tudo aquilo era novo para mim. Ouvia tudo, mas tinha um medo desgraçado deles. Já pintava, fazia publicidade no ateliê do José Rocha, no Estúdio Técnico de Publicidade, com o Fred Kredoffer, um suíço que depois da guerra passou por cá. Foi muito importante. Era um gráfico. Virou isto do avesso para uma coisa boa. Fez coisas lindíssimas e acabou por fazer escola. As pessoas começaram a perceber que a publicidade podia ser uma coisa bonita.
Nessa altura não era fácil fazer uma exposição. Não havia galerias, a não ser a Bobone. Só lá entravam os grandes valores. Fiz uma exposiçãozinha numa casa de móveis na rua do Ouro. Gostaram. Não havia, como hoje, esta apetência para comprar arte, mas apareciam aquelas pessoas que pediam para fazer o retrato do filho, porque era tão bonito, e nós fazíamos. Agradeciam muito, levavam, mas não pagavam. Uma vez fui a casa do Manta fazer-lhe uma visita. Vinha lá do Poço do Bispo, onde eu morava. Quando cheguei ele disse-me que ia pintar o meu retrato, puxou do cavalete e lá me pus, mas disse-lhe que ao mesmo tempo faria o dele. Ali estivemos duas horas.
Já há pintura a mais
Fiz muitos retratos, pintava as pessoas amigas, mas agora não gosto de pintar. Gosto de fazer retratos para guardar a pessoa, sobretudo as expressões. Mas fazer um quadro? Fazer uma natureza morta? Para quê? Fiz muitas, mas acho que não vale a pena. Pego num desses grandes livros de arte, com todos aqueles grandes pintores e aquilo não me emociona. O que me emociona é a forma das coisas. Se tiver um quadro muito bem composto, gosto. Mas para quê pintar uma senhora nua? Vestida, ainda pode ter umas sedas. Não é por uma questão de pudor. Só constato que a arte está cheia de mulheres nuas. É esquisito.
Artista empenhada, Maria Keil chegou a estar presa em Caxias |
Ana Baião |
Costuma dizer-se que a arte cultiva-se. No dia em que a terra estiver coberta de searas de arte, os frutos e o pão vão saber a tinta. Acho que já há pintura de mais. Não tenho nenhum prazer em pintar. Desenhar sim. Nem sempre gosto de ver um quadro numa parede, porque por vezes gosto muito mais de uma bonita parede. Há paredes tão bonitas.
Presa em Caxias
Estive presa em Caxias, porque isto era tudo exagerado. Fomos 50 pessoas ao aeroporto esperar D. Maria Lamas, que vinha de um congresso da Paz. Parece que era um crime terrível. Assim que o avião parou, as pessoas que estavam à espera dela foram para a cadeia. Não havia motivo nenhum. Era só exagero e, se calhar, medo. Fomos para dentro de uma carrinha e levaram-nos para Caxias. Ficámos lá um mês.
Foi uma boa experiência. Éramos 12 mulheres fechadas numa cela. Fartámo-nos de trabalhar. Algumas mandaram vir os livros e os cadernos, com os quais estudavam e ensinavam umas às outras. Eu pedi trabalhos que tinha em mãos em casa. Aquilo não foi doloroso, o que não quer dizer que as coisas sejam assim. Porque havia lá outros presos, nomeadamente mulheres, que comunicavam com pancadinhas. Algumas de nós que já tinham estado presas, conheciam aqueles sinais e traduziam.
Havia lá mulheres completamente isoladas, mas sabíamos muito bem o que lhes faziam. É uma coisa horrível. Aquela gente não merecia o mais pequeno respeito. Aquilo marcou-me, porque entrei no sítio e vi as coisas como elas eram.
Não tive uma actividade política activa. Fazíamos o que era possível, sem nos envolvermos em células ou coisas similares, porque não éramos capazes de ter esse grau de envolvimento. Dávamos o apoio possível. Não tínhamos condições, nem conhecimentos, nem técnicas de luta que eram necessárias. Nesse sentido sabíamos que só poderíamos fazer mal se fossemos para coisas muito activas.
Tudo naquele tempo fazia revolta
Não tínhamos a estrutura necessária, mas tínhamos outro nível de participação e tudo isso fazia uma força, como se fosse uma mola. Era importante participar, porque tudo naquele tempo fazia revolta. Aquele tempo estava estragado.
Os novos de hoje não podem imaginar como é que foi. Há coisas escritas, mas viver aquele tempo, era diferente.
Maria Keil fez a sua primeira exposição individual aos 25 anos, na Galeria Larbom, em Lisboa |
António Pedro Ferreira |
Há tempos vinha de Setúbal com o meu neto, que agora tem mais de 30 anos, e apanhámos um engarrafamento monstro. Três horas para chegar à ponte. Falámos de muita coisa e a certa altura começámos a falar de religião. Ele dizia-me ter algumas dúvidas, certas coisas que não entende. Eu contei-lhe como é que tenho vivido. Quando era pequena, tive que ir para a catequese para aprender o catecismo. Um dia, o padre foi dizer ao meu pai que eu estava sempre a olhar para um lado e para outro e não dava atenção. Então comecei a dar atenção e vi que aquilo não era para acreditar.
Enquanto as outras estavam a rezar, eu estava a pensar e comecei a ver os fracos. Quando tinha mais uns aninhos conclui que não podia ser, mas tinha isto na frente e tinha de viver com isto.
Arranjei uma regra para mim, que tenho mantido toda a vida: não fazer nada que ofenda ou magoe os outros e ter uma atitude absolutamente limpa para lidar com as outras pessoas, sejam boas ou más. Ter um respeito total por mim. Nunca fiz nada de propósito para fazer mal a alguém. É que como não sei o que se passa depois, tenho medo das consequências. Há qualquer coisa. Ainda não percebi se há ou não. Isso tem-me guiado a vida toda, com um respeito total por mim e pelos outros. Como há aquela coisa tão poderosa em que não acredito, o melhor é agir com cuidado e esperar para ver.
Nunca percebi a religião católica
Uma componente importante da obra da artista passa pelo trabalho do azulejo, como pode ser visto em várias estações do Metropolitano de Lisboa ou no painel da Avenida Infante Santo |
Ana Baião |
Não casei pela igreja. A minha família ficou muito chocada, mas como tinha casado com aquele menino bonito de uma família muito importante, eles acharam que devia ser bom. Eles eram tão importantes, que devia ser bom. Nunca consegui perceber a religião católica. As outras não as conheço, sequer.
Há coisas que passaram por mim, das quais já não me lembro. Mas há sempre memórias que ficam, como o 25 de abril. O meu marido estava muito mal. Morreu no ano seguinte. Morávamos junto à Casa da Moeda. Eu só via o que se avistava da janela, que por acaso era um sítio de passagem.
Era uma coisa linda. Era fantástico. Tive tanta pena de não poder ir para a rua. Nesse dia, fui comprar um cravo. Coloquei-o numa jarra junto ao meu marido. No final do dia estavam lá mais de 70 cravos. Tanta gente que lá passou. As pessoas mais incríveis. Ele dizia para o José Gomes Ferreira: "Eu vi, eu ainda vi".
A viagem esteve sempre presente na minha vida. Com o meu marido íamos de carro. Andámos pela Holanda e Europa. Em 1980 fiz a viagem mais importante. Pedi uma bolsa à Gulbenkian para ir ver literatura infantil. Fui sozinha, com um saquinho que pesava cinco quilos. Deram-me um bilhete de avião e eu troquei por um de comboio, do InterRail.
Fui a Londres, passei pela feira do livro infantil de Bolonha, segui para Varsóvia, depois Praga. A seguir fui a Paris ver as editoras todas e percebi que o negócio do livro infantil é tremendo. Ainda fui à Suíça. Regressei, ao fim de três meses.
A maior viagem foi à América, logo depois da guerra. Não havia transporte, conseguimos ir num barco carregado de cortiça. Demorámos 19 dias a chegar. Era um barquinho pequeno, que levava uma dúzia de passageiros, alguns deles ainda refugiados da guerra civil de Espanha. Iam lá duas senhoras espanholas, mãe e filha, que não viam o pai e o marido desde o princípio da guerra. Nunca mais se viram. O Mundo é deslumbrante, mas não é bonito.
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