sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Fernando Pessoa e os heterónimos


Fernando Pessoa é a personalidade mais importante do Grupo do Orpheu, isto é, das tendências post-simbolistas portuguesas, mas ninguém deu conta do valor da sua arte, antes da sua morte, a não ser o seu restrito grupo de amigos. Só em 1934 é que a sua Mensagem, única obra publicada em vida, mereceu o segundo prémio do Secretariado Nacional de Informação. Só em 1943 é que o seu velho amigo Luís de Montalvor inicia a publicação das suas obras completas, dele e dos seus heterónimos. Passou-se então do desconhecimento a uma explosão de espanto e admiração, tornando-se o mais imitado de todos os poetas modernos.
A maior parte dos críticos está de acordo em que o grande valor do poeta está na sua profunda, quase chocante originalidade: ele nunca pensa, nunca diz como os outros, ainda mesmo quando imita. Veja-se, por exemplo, a réplica originalíssima do seu Mostrengo (Mensagem) ao episódio de O Gigante Adamastor de Camões. Transmitindo a mesma mensagem épica, ele foi originalíssimo, quer na forma, quer nas imagens, quer no símbolo que contrapôs ao gigante: o mostrengo.
A força do seu estilo está no imprevisto, no escândalo do anormal, no choque do paradoxo, e sobretudo no jogo artístico do fingimento. Para o poeta a arte é apenas um jogo de que ele, como ninguém, soube lançar os dados. Ele foi o primeiro e único poeta que conseguiu unificar, como verdadeiro motor da sua arte, a sensibilidade e a razão: "o que em mim sente está pensando". A inteligência e a sensibilidade sempre unidas para lançar os dados e realizar o jogo artístico.
A própria criação dos heterónimos é fundamentalmente um jogo. É certo que o próprio poeta radica a origem dos seus heterónimos na tendência que tinha em criança de criar companheiros imaginários para brincar (sozinho).
Os heterónimos não são apenas, como diz Mário Sacramento, "meros títulos da obra de Pessoa". Cada heterónimo que surgia correspondia não só a uma determinada posição ideológica e artística de Pessoa, mas também a um modo diferente de escrita. "Não são só as ideias e os sentimentos que se distinguem dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo, é diferente do meu" (Fernando Pessoa).
A maior e mais genial das metáforas criadas por Pessoa foi ter-se instituído multiplamente como vários poetas diferentes, sem deixarem, no entanto, de ser "ele". O "fingimento" é a mola mais poderosa da sua poesia, e o ponto mais alto do seu fingimento está na sua despersonalização nos vários heterónimos, na criação do seu "drama em gente". Os heterónimos dão o travejamento do seu cosmos poético.
Só são grandes os poetas que sabem inventar o seu próprio universo artístico; e esses são sobretudo poetas de inteligência, como Fernando Pessoa.
Como nasceram os heterónimos de Fernando Pessoa. Vejamos a resposta dada pelo próprio poeta ao seu amigo Armando Cortes Rodrigues:
"Passo agora a responder à tua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos.
Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida. Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (...)
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (...)
Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. (...)
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (...)
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever. (...)"
Há, com certeza, muita mistificação neste texto de Pessoa (a mistificação esteve sempre dentro da sua técnica de fingimento). A heteronimia de Pessoa é, essencialmente, uma genial construção intelectual de um universo literário (poético), dentro do qual pudesse instituir-se como o super-poeta que ele próprio, com corajosa sinceridade, se considerou. A poesia de Pessoa é essencialmente dramática. As personagens desse drama encontrou-as ele no desdobramento do seu "eu", na sua própria despersonalização. Daí o nome que ele mesmo deu a esse universo artístico: "drama em gente".
Angel Crespo, na linha do pensamento de Jorge de Sena, distingue entre Pessoa - ortónimo e Pessoa - ele mesmo. Pessoa - ortónimo é o cidadão Fernando Pessoa que escrevia cartas aos amigos, autor da Mensagem, dos Poemas Ingleses e dos Poemas Franceses, e essa espécie de demiurgo criador dos heterónimos. É de Jorge de Sena a afirmação: "a obra ortónima do poeta não é menos heterónima que a dos poemas que assinou depois da criação dos heterónimos, é também heterónimo. Se assim não fosse ele não seria personagem do seu "drama em gente", o que redundaria num contra-senso.
Angel Crespo escreveu: "Pessoa é um dos poetas mais enigmáticos de qualquer tempo e lugar os heterónimos nimbam Pessoa de um prestígio oracular, de uma aura absolutamente fantástica... É preciso estudar esse fenómeno sem lhe querer destruir o mistério..."
Fernando Pessoa é "um animal literário", no sentido de que todos os seus fingimentos se orientam ao travejamento da sua monumental obra poética, penetraremos mais facilmente no enigma que ainda constitui este grande inventor de metáforas.

Sem comentários: