domingo, 8 de janeiro de 2012

O acordo é, efectivamente, um desacordo


Trouxe daqui um texto extraordinário sobre o AO90!



Não sei se já vos disse, mas aqui me confesso: sou violentamente contra o Acordo Ortográfico.

Façam-me a gentileza de ter paciência e embarquem comigo num breve raciocínio:

Imaginem que um dia, sob pretexto de tornar os edifícios mais uniformes na sua estrutura, um qualquer regulamento obrigava a que todas as construções usassem o mesmo tipo de cimento: um cimento certamente livre de algumas impurezas, de alguns químicos, e supostamente mais fácil de aplicar, dito mais eficiente e aperfeiçoado; um cimento mais flexível que qualquer pedreiro soubesse usar, independentemente das técnicas particulares a que estava acostumado.

Imagine-se, agora, que, com o tempo, se viria a descobrir que, afinal, o tal cimento não só não era mais fácil de aplicar – porque este cimento não obedecia a nenhumas regras físicas em particular -, como acabava por rachar também em algumas situações, começando os prédios, que anteriormente se aguentavam em pé durante muitos anos, a colapsar poucos dias após a sua construção. É que este era um cimento que permitia uma construção de procedimentos facultativos; um cimento que, por ser mais fácil de manusear e sem obedecer a muito restritas regras físicas, cada pedreiro usava efectivamente como mandava a sua preferência ou o seu costume.

Não seria um cenário feliz. Ora, é isto que acontece com o Acordo Ortográfico.

Sob o pretexto de tornar uniforme o português das várias regiões do Mundo, o edifício da língua começa a desmoronar-se. Em tom de gozo, falamos de um DesAcordo Ortográfico, mas é verdadeiramente disso que se trata. Não sei se já leram o artigo do Diário da República em que se promulga o Acordo; eu já, e não há nele nada que garanta a uniformidade da língua. Porque, convenhamos, quando uma lei diz que há que observar o que acontece “invariavelmente” nas “pronúncias cultas da língua” para decidir se se mantêm ou não as sequências consonânticas – e outras situações -, isso não é já lei alguma. Se a maioria dos falantes não sabe as regras básicas da língua, quantos saberão se nas pronúncias cultas da língua os c e os p antes de outras consoantes se lêem ou não? Pior: o que prescreve o acordo em casos em que a pronúncia culta da língua profere tais sequências consonânticas mas em que o uso circula entre a prolação e o emudecimento, como acontece com aspe[c]to ou com rece[p]ção? O uso facultativo, triunfo encapotado de livre arbítrio de quem não tem resolução coerente para os problemas formais que criou, e que não se apercebe de que, assim, cria ainda outros tantos.

Uma língua é como a matemática; um sistema de regras, um código. E assim como na matemática não pode ser facultativo representar um 6 com a “perna para baixo” (9), também na língua o facultativo não pode existir, sob pena do sentido se esvair em sangue e de tornar, assim, a língua vazia, não mais do que sons que passam a ser uma nebulosa, não sendo muito certo o que querem os seus falantes dizer. É isso que acontece quando o Acordo torna também facultativo o uso de acento agudo no pretérito perfeito: amámos eamamos podem, assim, significar exactamente o mesmo. Presente e passado iguais; que triste fado para uma língua que se gaba de ser a única a ter uma palavra para saudade.

«Facultativamente» é, infelizmente, uma das palavras mais comuns neste Acordo, e isso é algo de assinalar. Supõe-se que, num acordo, haja acordo entre as partes: é esse o princípio base que sustenta a sua capacidade uniformizadora, a sua harmonia, o seu poder e o seu objectivo. Mas o Acordo, que os nossos governantes dizem necessário para fazer face à necessidade de ter uma língua uniforme para o ensino do português no Mundo e para o afirmar como língua de trabalho em instituições internacionais, falha precisamente aí. Na tentativa de promover uma língua uniforme, o Acordo logra até produzir o dúbio artificial e instaura oficialmente a grafia dupla.

Hugo Picado de Almeida




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