Não pude deixar de publicar este texto excelente de António Rosa Mendes
No final deste artigo vai aparecer, em itálico, uma nota que não é da minha responsabilidade mas da direcção do jornal:
“O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico”. Presumo que a direcção procede bem: o leitor tem, efectivamente, todo o direito a saber se quem escreve o faz ou não “ao abrigo” do aludido convénio. Em princípio, seria desnecessária, por redundante, a advertência, porquanto qualquer leitor atento, ao primeiro lance de olhos, devia lobrigar se a ortografia era “nova” ou era “velha”. Pelo que a nota final revela, no fundo, que a direcção do JA sabe, ou pelo menos suspeita, que a generalidade dos leitores desconhece o clausulado do “novo Acordo Ortográfico”. Tal qual eu desconheço, confesso. E até adianto: apesar de trabalhar num meio escolar, portanto privilegiado para o efeito, até à data só encontrei uma única pessoa que verdadeiramente conhecesse, em sua parafernália de regras e excepções, o famigerado acordo. Sei de outras muitas, é verdade, que pretensamente o aplicam. Porém essas limitam-se à fácil e lúdica erradicação das consoantes mudas: escrevem “fato” por facto e “ata” por acta, põem “ótimo” por óptimo, grafam “espetador” por espectador… E pronto – em relação a esses escreventes, a nota final da direcção (da “direção”, emendariam eles) já não teria cabimento. Enfim, reina neste campo devastado da ortografia portuguesa, como é público e notório, a triste confusão da anarquia; as instâncias responsáveis não curaram de explicitar a pertinência, nem as motivações, nem mais comezinhamente a utilidade prática do “novo Acordo Ortográfico”; e, embora a administração pública (nem toda) o tenha adoptado (ou “adotado”?), parece que nem sequer entrou juridicamente em vigor.
Tudo isto é bem revelador da insustentável ligeireza com que se trata o mais precioso componente da nossa identidade nacional: a linguagem escrita, que é a coluna vertebral da consciência humana, o repositório do pensamento rigoroso, a matéria plástica da expressão verbal em toda a sua multímoda riqueza de matizes. Mas a palavra escrita deixou de ter valor. Hoje predominam a imagem e o som (ou melhor, o ruído) – e os insensatos comprazem-se estultamente no estólido estribilho de que “Uma imagem vale mais que mil palavras”, sem se aperceberem de que ele corresponde afinal, não à valorização das artes visuais, mas aos interesses comerciais das televisões, que são o grande poder espiritual da nossa época. Por conseguinte, a palavra escrita deteriorou-se, degradou-se, estragou-se; moeda corrente é um discurso escrito sem ordem nem sintaxe, por vezes indecifrável, atropelando a gramática e as mais elementares regras da correcção linguística. É o resvalar insidioso para a barbarização intelectual e moral, para a conversão dos cidadãos em autómatos manipuláveis, sem espírito crítico nem exigência mental. Onde a linguagem escrita se corrompe – ensinaram os humanistas do século XVI – é a própria sociedade que se corrompe.
A atabalhoada aplicação do “novo Acordo Ortográfico” insere-se nessa calamitosa desvalorização da palavra escrita.
Basta estar atento à realidade comunicacional circundante para constatar que só contribuirá para acrescer a confusão e fomentar a ruína da língua portuguesa, que mormente as televisões tão empenhadamente prosseguem. Cite-se, só como pano da amostra, o “jornal das 8” da TVI, de 16 de Abril passado: durante largos minutos um grosso letreiro afixava: INDEMINIZA-ÇÃO – os ignaros redactores (perdão! “redatores”) da estação, com ou sem “novo Acordo Ortográfico”, nem o vocábulo “indemnização” são capazes de escrever correctamente (outra vez! “corretamente”).
Mas há pior, e donde menos se espera. Ora atente-se no acórdão n.º 244/2011 do Tribunal Constitucional (sim, o areópago dos sábios, no qual é suposto que estagiem venerandos jurisconsultos, tão cordos quanto sapientes). Nessa sentença, publicada e facilmente consultável, pode ler-se na sua parte conclusiva, a mais importante: “Em conclusão, pode afirmar-se (…) que, quanto ao aspecto em questão, não há lugar há aplicação subsidiária de quaisquer normas do Código de Processo Civil”. Afinal, perguntará perplexo qualquer normal sujeito, “não há” ou “há”? O verbo haver (“há”) é igual à contracção da preposição “a” com o artigo definido “a” (“à”)? Talvez tudo não passe de distracção do conspícuo relator… Porém, o acórdão vem subscrito pelo plenário do alto pretório, que certa e seguramente o leu e reviu, pois que a certeza e a segurança são o timbre da juridicidade e, por maioria de razão, das decisões judiciais.
Uma nota final (que nada aparentemente tem a ver com o “novo Acordo Ortográfico”). Se eu trocasse o “há” pelo “à”, a minha severa professora do ensino primário, que não era para brincadeiras e não queria saber de “distracções”, aplicava-me acto contínuo, com “c” ou sem “c”, um valente correctivo que me deixava a pão e laranjas! Mas que querem, a velhota dava grande valor à (não “há”) palavra escrita…
Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.
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