terça-feira, 23 de outubro de 2012

Álvaro de Campos (irmão gémeo de Pessoa) - Fase intimista/abúlica



A última etapa do percurso de Campos torna-o "irmão gémeo" de Fernando Pessoa. A excesso da fase futurista, segue-se uma outra fase marcada pelo desencanto, o tédio e a náusea existenciais.
Em poemas como "Lisbon Revisited" ou "Aniversário", Campos é aquele que, dominado pelo pensamento, é incapaz de sentir; experimenta o tédio existencial e olha a infância como tempo de felicidade e paraíso para sempre perdidos. Mas o poema mais emblemático é "Tabacaria", ao revelar o fracasso existencial de um "eu" dividido, a quem falta energia para concretizar o sonho, experimentando um pungente sentimento de estranheza que "pesa como uma condenação". É impossível não reconhecer afinidades entre o ortónimo e este Álvaro de Campos: as experiências de viagem e de educação no estrangeiro, nomeadamente. Foram experiências intensas, difíceis, abafadas, para um Fernando Pessoa menino que, arrancado da sua Pátria, se vê fazer parte de uma nova família, num novo país, com uma cultura e língua igualmente novas.
Campos expressa então o que Pessoa não conseguiu confessar, mas indo muito além, tornando-se excessivamente alguém que está indo muito mais além, tornando-se excessivamente alguém que está sempre a partir e a chegar, a ficar, quer no real, quer no imaginário, e afirmando-se "Estrangeiro aqui e em toda a parte" ("Lisbon Revisited II")

"Lisbon Revisited" - O poema apresenta, simultaneamente, aspectos ainda futuristas, pelo tom provocatório e irreverente, e características que fazem aproximar este Campos de Pessoa ortónimo:
  • a incapacidade de relacionamento com os outros - "Não: não quero nada.  / Já disse que não quero nada. / (...) Deixem-me em paz!";
  • o individualismo exarcebado - "Quero ser sozinho. / (...) quero estar sozinho!";
  • o tom de lamento e de queixume ao longo de todo o poema;
  • a recusa da civilização moderna - "Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas / (...) Das ciências, das artes, da civilização moderna!";
  • a recusa da mediania e da mediocridade de vida - "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?";
  • a atitude irreverente - "Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!";
  • a recusa de qualquer tipo de proteccionismo - "Não me peguem no braço! / Não gosto que me peguem no braço";
  • a evocação do mundo da infância - "Ó céu azul - o mesmo da minha infância";
  • a nostalgia de uma outra Lisboa - "Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!".
"Esta velha angústia" - Este poema é como que o ponto de chegada de uma linha temática que se inicia em "Ode Triunfal", passa pela "Ode Marítima" e "desemboca" em poemas como "Lisbon Revisited", "Aniversário" ou "Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa". Assim, da exaltação e da euforia febril de "Ode Triunfal" passa-se ao tédio, ao desejo de solidão, à náusea e à angústia.
Neste poema, é de referir a presença das linhas de força características da fase de desencanto de Campos:
  • a angústia existencial - "Esta angústia que trago há séculos em mim, / (...) Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!";
  • a perda de identidade: "(...) é este estar entre, / Este quase. / Este poder ser que...";
  • a coexistência fracturante dos opostos e consequente desagregação do "eu" - "Estou lúcido e louco",  " Estou dormindo desperto";
  • a infância perdida - "Pobre velha casa da minha infância perdida!";
  • o vício de pensar - "Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?";
  • a desmotivação e a constatação do absurdo: "(...) grandes emoções súbitas sem sentido nenhum";
  • a incapacidade de sentir - "Estala, coração de vidro pintado!"
"Aniversário" - Neste poema, Campos aproxima-se, mais uma vez, da poética do ortónimo. Vejamos os principais aspectos convergentes:
  • a infância como o paraíso perdido - "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto.";
  • a nostalgia e a saudade das vivências familiares - "O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado - / As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa!;
  • o desencanto do presente - "O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, / Pondo grelado nas paredes...":
  • a fragmentação do eu - "Com uma dualidade de eu para mim...";
  • a oposição presente / passado ilustrada no verso metafórico - "Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!".
"Dactilografia" - Neste poema, mais uma vez, Álvaro de Campos, exprime o seu tédio existencial, evocando a infância. Atente-se em aspectos como:

  • a solidão e o isolamento - "Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano, / (...) Remoto até de quem eu sou";
  • a monotonia e a náusea existenciais - "Que náusea da vida! / Que abjecção esta regularidade!";
  • a referência às duas vidas - "Temos todos duas vidas";
  • a vida verdadeira, a da felicidade possível e sonhada - "A verdadeira, que é a que sonhámos na infância, / (...) Há só ilustrações de infância: / Grandes livros coloridos, (...) / Grandes páginas de cores para recordar mais tarde." - e a vida falsa, a do sofrimento e da morte - "A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, / (...) Aquela em que acabam por nos meter num caixão";
  • as relações entre realidade / sonho, passado / presente, vida verdadeira / vida falsa.
"O que há em mim é sobretudo cansaço" - Campos exprime, de um modo repetitivo, a sua incapacidade de ultrapassar o cansaço que o domina. Sublinhe-se:
  • a incapacidade inicial de determinar a origem do cansaço - "Não disto nem daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada";
  • a constatação de que a origem do cansaço é múltipla - 2.ª estrofe.
  • a oposição entre o "eu" e os outros - 3.ª estrofe.
  • a aceitação da infelicidade e do cansaço - "E o resultado? / (...) Para mim só um grande, um profundo, / E, ah com que felicidade infecundo, cansaço".
"Apontamento" - O sujeito poético exprime o desencanto, a desilusão, a desistência da vida, através da referência a:
  • comparação entre a alma e um vaso partido - "A minha alma partiu-se como um vaso vazio";
  • fragmentação do "eu" - "Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir";
  • domínio do pensar e da consciência - "(...) os cacos absurdamente conscientes, / Mas conscientes de si-mesmos";
  • a conclusão final - "...A minha vida? / Um caco".

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