Os que querem acabar com a educação pública gratuita são os mesmos que andaram nas melhores e mais caras escolas privadas.
PORTUGAL ESTÁ ENTREGUE À BICHARADA. A um grupo de pessoas que acha que os portugueses são cifras. Excedentários, gastadores, abusadores. Gente que tem de uma vez por todas de aprender o seu lugar, e este lugar é o da pobreza e da diminuição de direitos.
Esta bicharada que assim pensa nunca teve o menor contacto com a realidade que descreve. As pessoas que querem acabar com a educação pública gratuita são as mesmas que andaram nas melhores e mais caras escolas privadas e nunca pisaram o chão de uma escola secundária no subúrbio.
Tomemos um desses senhoritos dos mestrados de luxo. Andou desde pequeno num colégio particular (são bons, são caros) e passou para uma universidade ou business school internacional onde foi sustentado pelos pais. Depois de uma 'brilhante' carreira lá fora e tendo escrito meia dúzia de redações sobre o pensa–mento económico contemporâneo, o que lhe dá garantias de manter o seu estatuto e estilo de vida, sem nunca ter publicado um livro ou feito um trabalho de relevo, o pupilo reentra na pátria onde a posição paterna, o nome de família ou os conhecimentos da praxe lhe reservam um lugar quente no topo da classificação social portuguesa.
Aqui chegado, o pupilo descobre que os salários das melhores empresas nacionais estão ao nível dos melhores salários internacionais, e que sem grande esforço conseguirá uns bons milhares de euros por mês, viagens, cartão de crédito e regalias como a reforma breve ou um substancial pé de meia, mais as bonificações e adjacências. Para quê gastar os neurónios a competir com asiáticos trabalhadores ou americanos sobredotados, quando pode levantar-se às nove da matina e jogar golfe ao sol? Talvez compre um barco.
O pupilo descobre como é bom viver em Portugal. Com sorte, convidam-no a dar aulas numa universidade privada, secção negócios. Pá, fizeste o mestrado, não custa nada, ficas com currículo e mais um salário.
Um amigo aconselha-o a conhecer melhor umas pessoas da política Pá este partido mais cedo ou mais tarde vai para o poder, podes continuar independente mas convém ter contactos, sabes como é, em Portugal ninguém se safa sem os partidos. És de direita, não és? Vamos correr com a esquerda não tarda nada e aí acaba-se a mama dos gajos. Começamos nós a mandar.
O nosso pupilo pertence àquela escola e corrente de pensamento, muito em voga nas business schools, que emite sentenças como esta: só é pobre quem quer. Não se trata de escolher entre monetaristas e keynesianos, entre neoliberais e sociais-democratas, entre Adam Smith e Marx, que ele, aliás, nunca leu nem tenciona ler. Mesmo o Keynes... Nada daquilo faz senti–do hoje. O último livro que leu foi sobre Wall Street, um dos milhares de livros sobre Wall Street e o crash e o subprime, feitos em cima da hora e alguns em cima do joelho, para contar como foi e dizer como vai ser, embora nenhum desses génios do momento e teólogos da libertação se tenha lembrado de os escrever antes do estoiro. A indústria dos escribas de Wall Street é igual a Wall Street. Show me the money.
O pupilo gosta de ler aquelas coisas, lendas do poder e do dinheiro, in english. É bilingue. Seria trilingue não fosse o seu ódio ao estudo de livros com letras em vez de números lá dentro. Sempre foi melhor a aritmética. A estatística e o cálculo são o seu forte, vastos terrenos de numéricas imponderabilidades onde as pessoas foram reduzidas a quadrículas onde têm tendência a não caber. Há pessoas a mais em Portugal. Demasiados chulos do Estado. O país tem de ser limpo, correr com eles, instalar um sistema de livre mercado e livre competição, cada um por si e ninguém por todos.
Pessoas como ele, o produto forte da livre concorrência.
De contacto em contacto, o nosso pupilo entra no partido e o partido ganha as eleições. O nosso pupilo é, agora, um "político" e entusiasma-se. Nutre o desejo fundo de refundar a pátria. Expurgá-la. Pá, isto não dá muito em dinheiro mas quando saíres estás garantido. Tens currículo. É uma oportunidade histórica para mudar isto de vez, o vento sopra a nosso favor, os socialistas estão mortos, vamos ficar 20 anos no poder. Portugal é nosso. Nosso e dos angolanos, ah ah ah.
Aceita. E de imediato começa a consulta. Por ele, é cortar a direito. Sobretudo nos serviços que nunca usou. Nunca foi a um hospital público. Os privados são muito melhores. Privatizar e vender. Correios, águas, energia, lixo, transportes, etc. Quem não puder pagar as tarifas que se amanhe. Ele pode. Quer e manda. A crise tem destas coisas: uma oportunidade de fazer um país como ele gosta. Para ricos. Para os amigos dele. Que não são tansos.
Caramba, a história do BPN é medonha. Só os portugueses é que comem e calam assim, bando de parvos. E mal-agradecidos. Portugal é um oásis.
CLARA FERREIRA ALVES
Expresso, Revista, 27-10-2012
Expresso, Revista, 27-10-2012
1 comentário:
Vim pelo texto, e depois vi as peças que faz, e gostei :)
Val€ a p€na fazer esses trabalhos? A arte vende?
Rui
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