sábado, 12 de janeiro de 2013

"O Acordo Obscurantista"


Quem diria?! Depois dos míseros tempos salazaristas, em que tudo nos faltava menos o saber escrever, e fruindo o regime democrático, que é suposto respeitar o saber e o esclarecimento, afundamo-nos na penúria social, e até das Letras somos despojados. Não é só da Cultura que sofremos privação, é da sua base, dos caracteres que a constituem, meras formas arbitrárias que ganham, com o tempo (a História), peso e organicidade, tornando-se fundamento da manifestação humana.
De facto, o golpe antidemocrático que constituiu a rejeição, pela Assembleia da República, da petição que solicitou em Maio de 2008 a anulação, ou revisão, do Acordo Ortográfico, então assinada por mais de trinta mil cidadãos no espaço de 50 dias (e ultrapassa já os cem mil), encaminha a geração actual para o obscurantismo na leitura, na produção da escrita e na apreensão dos sinais diacríticos que permitem à criança ir elaborando o seu sistema de conhecimento, em que letras e conceitos, conectados em rede de relações, lhe vão estabelecendo a visão do mundo feita do saber comum e da sensibilidade que a cada uma é própria. É nesse saber, travejado pela Língua Materna (que algumas reformas pontuais usam ir acertando na sua gradual corrosão pelo utente, mas nunca em alteração forçada decidida do exterior, por instâncias de determinação política), que são desfechados pelo Acordo Ortográfico ataques ignaros e aleatórios, com medidas que fazem das alterações ortográficas autênticos ataques a aspectos estruturais da Língua, e ao que ela indicia de experiência humana adquirida. Como quem maltrata a pele do corpo, supondo que nela se não danificam os órgãos, e afinal lhe imprime lesões de irreparável marca para o próprio funcionamento orgânico. Esta metáfora biológica não é de bom tom em certas doxas mas, na verdade, também da sua cumplicidade neste processo aqui se trata.
Falo de golpe antidemocrático porque a democracia não se limita à expressão livre de uma votação que, em liberdade, venha a sancionar uma coisa qualquer. A democracia exige uma responsabilidade de factu (daí que, em certas matérias, se não compadeça com a disciplina partidária) e, acima de tudo, exige competência. E, porque se não pode exigir a todos os deputados que sejam competentes em todas as matérias, é para isso que existem pareceres de especialistas, recursos de cidadãos, as Comissões da Assembleia da República. Ora a petição de 2008 fazia-se acompanhar de nove pareceres de especialistas, e a Comissão de Ética da AR pronunciou-se inequivocamente a favor dos peticionários. Voltou então à votação, e… que fizeram os deputados? Votaram pelo que lhes dizia a manifestação do Saber e da Competência? Não. Fizeram deles tábua rasa, rejeitando a petição de modo discricionário e, portanto, antidemocrático e obscurantista. E foi um triste espectáculo ver, como eu vi, os deputados com decência moral a saírem da sala antes da votação, para não terem de votar contra a sua própria ciência, e observar os partidos políticos perfilarem-se, em maioria, contra a expressão do conhecimento. Um negro momento da nossa democracia!
Agora, os responsáveis políticos brasileiros dão exemplo de sensatez e morigeração, adiando a aplicação dessa absurda disposição legal para a estudar como deve ser, ou então aboli-la de vez. Pois até os países ricos têm despesas mais úteis a fazer do que com alterações de livros e demais material édito, quanto mais nós, já falidos. Certos responsáveis pela promulgação ter-se-ão apercebido do logro em que caíram, movidos por interesses no imediato rendosos, ou por almejados sucessos políticos já na altura em dúvida, a iludirem alguns. Defensor do Acordo, o linguista Evanildo Bechara (que o defendia, pasme-se!, dizendo-o eivado de incorrecções, que nunca poderia servir de base a uma disposição legal de modificação ortográfica – conforme salientava no Parecer apresentado, em 2008, à nossa AR – em contradição de termos que surpreende qualquer leigo, e deixa entrever os jogos de interesses no acto implicados), é agora a personalidade que motiva a decisão da Presidente do Brasil. E, se isto acontece, não há mais razão para Portugal continuar vergado ao torcilhão que já está sofrendo a sua Língua Pátria, com uma utilização abusiva nas escolas, em publicações, nos documentos do Estado.
Porque a pior das falências é a que não tem recuperação! A que condena as crianças à aprendizagem de uma macacada ortográfica que vai de par com obras literárias e outras ainda escritas como deve ser, e se submete à vacilação docente dos educadores, que não estão aptos a ensinar a nova ortografia (porque não podem estar, tão “impossível” de aplicar ela é!), e se sujeitam às emendas desencontradas dos correctores ortográficos (uma espécie de fraudulentos “corretores” de bolsas disfarçados), diferentes uns dos outros, num atropelo ganancioso e aflitivo de caos, e que personificam a máquina, na pior das visões que de Orwell poderíamos herdar, a dominar-nos estupidamente a mente e a criação literária.
É tempo, é ainda tempo! Se saber escrever foi, até hoje, caminho para pensar melhor, com o Acordo Ortográfico pôr-se-ia em prática a máxima ideal para Governos opressores ante os cidadãos que governam: quanto mais analfabetos, melhor… Ora isto não se compadece com um passado de Abril, e se alguém sai beneficiado não é, pela certa, o cidadão, nem a cultura, nem a política – pelo menos a de espinha direita! Saúde-se, pois, o baque de consciência de Evanildo Bechara, e a hora feliz em que Dilma Rousseff atalhou: “Alto! e pára o baile” – em vez de “para o baile”, como quer o Acordo, que tira o acento a “pára” assimilando-o a “para”, confundindo movimento com inacção, numa simbólica emblemática dos seus confusos objectivos. Contra esta confusão do entendimento, corrijamos de vez a monstruosidade que nos sai tão cara: em dinheiro que não temos, e no saber que é nosso, e alguns se interessam em destruir.
Maria Alzira Seixo

2 comentários:

Nilson Barcelli disse...

A prática seguida nos últimos anos, significa que os deputados não representam o povo, mas antes interesses individuais, de partidos e de outras coisas inconfessáveis.
Rita, minha querida amiga, tem uma boa semana.
Beijo.

José Horta Manzano disse...

Prezada Blogueira,

Antes de mais nada, quero dizer-lhe que me sinto honrado em ver reproduzido em seu espaço meu artigo ‘O remendo’, publicado pelo Correio Braziliense de 6 de janeiro.

Gostaria de sugerir-lhe transcrever também o artigo do professor Claudio Moreno, colunista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (Rio Grande do Sul). Seu escrito ― A Reforma adiada : a vitória do bom senso ― vai pelo mesmo caminho preconizado pela prezada blogueira.

Pode encontrá-lo aqui:

http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2013/01/14/a-reforma-adiada-a-vitoria-do-bom-senso/

Parabéns e boa continuação.

Cordialmente,

José Horta Manzano
http://BrasildeLonge.Wordpress.com/