Em 1990, quando oito países da CPLP
assinaram o Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa, eu era director da revista “Grande
Reportagem” e assinei, conjuntamente com Vicente Jorge Silva, então director do
“Público“, e Miguel Esteves Cardoso, então director de
“O Independente”, uma declaração, publicada nos respectivos meios,
comprometendo-nos a não aplicar o dito acordo nas nossas páginas. Passados
vinte e três anos, não mudei de opinião relativamente ao AO: fundamentalmente,
continuo a não aceitar o facto consumado de um acordo saído do nada, a pedido
de ninguém, não negociado nem explicado aos principais utilizadores da língua —
autores, professores, editores, jornalistas — e imposto a dez milhões de
portugueses por uma comissão de sábios da Academia das
Letras do Brasil e da Academia das
Ciências de Portugal.
Sempre temi a ociosidade dos sábios e a
tendência leviana dos governantes para legislarem a pedido das modas
intelectuais. Mas nunca pensei que uma nação que tinha levado a sua língua às
cinco partidas do mundo, chegando a ser a língua franca nos mares do sudoeste
asiático até ao dealbar do século XIX, fosse capaz de voluntariamente, e invocando
vagos interesses geocomerciais, propor a sua submissão às regras em uso num
país onde levámos a língua que o unificou. Por outro lado, não fui sensível ao
argumento de que as grafias mudam (sem ser naturalmente) e ao exemplo, tantas
vezes esgrimido, do ‘ph’ reduzido a ‘f’ pelo AO de 1945 (que o Brasil nunca aplicou, como também não aplicou o
anterior, de 1931…). Não alcanço que extraordinário progresso se
consumou ao deixar de se escrever “pharmácia”, a troco da “farmácia”, e acho
seguramente intrigante que idêntico progresso não tenha contagiado, por
exemplo, franceses e ingleses. que continuam a escrever a mesma palavra com ph.
Também nunca me convenceu o argumento de que o AO facilitaria a penetração da
literatura portuguesa nos PALOP e no Brasil, impossível de alcançar sem ele.
Quanto aos PALOP, basta o facto da
recusa de Angola e Moçambique de, até hoje, ratificarem o AO, preferindo
escrever no português que lhes levámos, para desmentir essa pretensa vantagem;
e, quanto ao Brasil, perdoem-me a imodéstia de invocar o meu testemunho pessoal
de quatro livros lá editados, todos com a referência de que “por vontade do
autor, manteve-se a grafia usada em Portugal” — e sem que isso tenha
prejudicado de alguma forma a sua edição, divulgação e venda.
Oito países falantes de português
assinaram o AO de 1990, mas como, após anos de espera em vão, apenas quatro o
tinham ratificado, esses quatro decidiram, em 2008, que eram suficientes para o
fazer entrar em vigor. O AO, que entre nós começou a vigorar aos bochechos em
2009, é, assim, e antes de mais, inválido, resultante de uma golpada jurídica não prevista no tratado inicial,
que apenas confirmou o voluntarismo idiota e o abuso político com que todo o
processo foi conduzido. Porque nunca conseguiu convencer quem devia, o AO foi
imposto manu militari, por governantes saloios, desprovidos de coragem para
enfrentar os lóbis da “cultura” e convencidos de que a força da lei há-de
sempre acabar por triunfar sobre a fraqueza da sem-razão. Surdos a todos os
argumentos dos oponentes (entre os quais o país deve uma homenagem de gratidão
a Vasco Graça Moura),
desdenhosos perante o abaixo-assinado com 130.000 subscritores contra o AO, sem
um estremecimento de vergonha perante o editorial do “Jornal de Angola” do Verão
passado (que aqui citei na altura), onde se escrevia que, se Portugal não
defendia a sua língua, defendê-la-iam eles, os governantes acharam que o mais
importante de tudo era não desagradar ao Brasil, a cuja presumida vontade fora
dedicado o AO.
Mas eis que na iminência de entrar em
vigor plenamente no Brasil, em 1 de Janeiro passado, uma petição com 30.000
assinaturas levou o Congresso a pedir e Dilma Rousseff a aceitar a suspensão da sua entrada
em vigor por três anos, para que melhor se medite no diktat dos
sábios. E chegámos assim à situação actual, verdadeira parábola sobre o destino
da sobranceria: neste momento, há três grafias
oficiais da língua portuguesa — a que vigora em Angola, Moçambique,
Timor, e que é a anterior ao AO; a grafia brasileira que é a mesma de sempre,
resultante do não acatamento de nenhum dos três acordos ortográficos assinados
connosco, ao longo de 60 anos; e a de Portugal, que, com excepções ainda
autorizadas, é resultante do AO de 1990 — feito, segundo diziam, para “unificar
a língua”, agradar aos brasileiros e não perder influência em África! É
notável, é brilhante, é mais do que prometia a estupidez humana! Perante este
facccccccccto, seria de esperar que os nossos sábios e os arautos dos amanhãs
que cantariam no português por eles unificado pintassem a cara de preto e
viessem pedir desculpas públicas. Eu dar-lhes-ia como castigo a conversão ao AO
do “Grande Sertão, Veredas”, de Guimarães Rosa.
Porque agora, digam-me lá, o que faremos
nós, depois de termos obrigado, e quase arruinado, os nossos editores a
converterem em português do AO todos os livros editados? Depois de termos
tornado obrigatórias no ensino as regras do AO, desde a época passada? Depois
de termos convencido prestigiadas instituições, como este jornal, a
submeterem-se ao Conselho de Ministros? Vamos, como legalmente previsto, tornar
o AO universalmente obrigatório para todos a partir de 2015, vergando de vez os
lusitanos que ainda resistem, sem saber se os brasileiros farão o mesmo no ano
seguinte? Vamos correr o risco de ficar a escrever numa grafia em que mais
nenhum país falante da nossa língua escreverá? Vamos oferecer um banco aos
angolanos e a TAP aos brasileiros, em troca de eles se renderem e terem pena da
nossa solidão? Vamos acolher a Guiné Equatorial na CPLP contra a jura de
ratificarem o AO? Vamos exigir aos ilustres embaixadores aposentados da CPLP o
mesmo destemor a defender o AO de que deram mostras a enfrentar o governo de
narcotraficantes da Guiné-Bissau? Ou vamos conformarmo-nos a ter uma geração de
pais que escreve de uma maneira e uma de filhos que escreve de outra maneira?
Porque uma coisa é garantida: a arrogância dos
poderosos não conhece arrependimento. Eles jamais voltarão atrás, reconhecendo
que se enganaram, que se precipitaram, que foram atrás de vozes de sereias, que
se esqueceram de que há coisas que nenhum país independente cede sem
estremecer: o território, o património, a paisagem, a língua. Trataram isto
como coisa menor, como facto herdado e consumado, de ministro em ministro, de
governo em governo, de parlamento em parlamento, de Presidente em Presidente.
Partiram do princípio de que os portugueses comem tudo, desde que bem
embrulhado em frases grandiloquentes, com a assinatura dos influentes e a
cumplicidade dos prudentes. Mas, dêem agora as voltas que quiserem dar aos
acordos que assinaram e à língua que lhes cabia defender e não trair, cobriram-se
de ridículo. Está escrito nos livros de História: um pais que se humilha para
agradar a terceiros, arrisca-se a nada recolher em troca, nem a gratidão dos
outros nem o respeito dos seus. Apenas lhe resta o ridículo. Oxalá ele chegasse
para matar de vez o triste Acordo Ortográfico!
Miguel Sousa Tavares
Sem comentários:
Enviar um comentário