Publicado no Jornal de Angola
Milhares de portugueses desesperados formam diariamente filas
intermináveis nos Centros de Emprego e outros largos milhares ainda é noite e
lá vão para Alcântara na tentativa esperançosa de conseguir um visto para
Angola, a nova Terra da Promissão.
O povo português é tradicionalmente um povo pobre, povo de olhar o chão
para ver se encontra centavos, tostões ou cêntimos. Mas de repente votou num
poder que lhe abriu as portas do paraíso artificial. Desatou a contrair
empréstimos para comprar primeira, segunda e terceira habitação, carros para
cada membro da família, computador para cada membro da família, cão para cada membro
da família, um telemóvel por cada operadora para cada membro da família.
Os bancos fizeram o seu trabalho de casa, deram empréstimos a cada
membro da família, deram cartões de crédito, cinco para cada membro da família,
até bebé tem cartão de crédito e empréstimo bancário em Portugal.
Narizes empinados, até pareciam ricos. Parecia que estavam a crescer, a
subir. Tinha até motorista de autocarro 463 que não parava na paragem quando
trabalhadora cabo-verdiana tocava. Trabalhar para pretos?
Menina mais castanha era chamada de “suja”, vai para a tua terra.
Presidente da Câmara de Lisboa apanhou sol desde os tempos dos avós e muitas
pessoas chamavam-lhe “o preto da Câmara”. Gostam muito de chamar “pretinho”,
gostam mesmo.
De repente acabou a teta da loba, secou, voltou ao que era, como sempre
foi: país muito pobre. Quase dois milhões no desemprego para o resto da vida.
Prosperam negócios ilegais, nas cervejarias trafica-se droga na cara da
polícia, à luz do dia assaltam-se pessoas e supermercados impunemente, a
polícia diz que não pode fazer nada.
Então chegam notícias, não de Preste João, mas da teta angolana: tem
leite enriquecido.
Chiu, não chama mais preto, eles não gostam e não te dão visto. E então
a procissão de nossa senhora da esperança avança para Alcântara, enche o
passeio como uma jibóia. Marcam lugar, vão rápido no bar, menina, uma bica bem
escura, eu não sou racista. Na bicha só se ouve “eu não sou racista, nunca fui,
eu nunca chamei preto a ninguém, acho que me vão dar visto…
Esses são os desgraçados, arruinados, miseráveis de um país no abismo.
Outros vivem desses. Os candongueiros, os fugitivos dos impostos, mas também os
intelectualóides que já foram paridos com um livro na mão. Passam lá de
madrugada quando voltam para casa e ao verem aquela bicha espumam como cão
vadio, põem cara de podre e murmuram “pretos da merda”, passam na bicha e
trombeiam “aquilo lá é uma ditadura, os chineses comem pessoas…”.
Ninguém liga a esses pereiras gayvotas de rabo gordo. Depois quando
acordam a meio da tarde voltam lá – e lá está a bicha – outra bicha
interminável, para recolher os vistos, os intelectualóides trombilham de novo,
despenteados, casposos e com a boca suja (intelectualóide lusitano não lava os
dentes): “ide lá, ide, ide lá fazer filhos mulatos…”
Derrotada em Sintra, à beira da exaustão nervosa, depois de três horas
no IC19, Ana Gomes chega a Alcântara e fala de longe aos desesperados de
migalhas: “Eu sou amiga de Angola, eu nunca falei mal de Angola, quem falou mal
foi o doutor Pacheco Pereira, eu nunca fui à Jamba, eu nunca vi o Savimbi, eu
não pus nome de Savimbi no meu filho, quem pôs foi o João…” Os zombies
lusitanos não a ouvem, nem a ela nem ao tal Pereira, os ciumentos, os
despeitados, os preconceituosos, os vozinhas finas, cheios de raiva por causa
daquelas bichas longas, cada pessoa que ali chega desesperada que chega à bicha
é mais uma cárie naqueles dentes sujos: “não, não, não estão a chegar mais,
doutor, diga-me que não estão a chegar mais…”.
Quem chega atrasado à interminável bicha diária e não ouviu, pergunta
quem é aquela nervosa com aqueles tiques esquisitos. Um desesperado lhe diz,
desinteressado: é uma gaja de Sintra que está bem instalada na Europa e vem
aqui cuspir perdigotos gozando connosco, como aquele Pereirinha gorduxoso esquisito
que brinca com a nossa miséria.
Então o desesperado alcança a porta e uma luz se abre, chora de alegria
pela primeira vez há muito tempo, sai do mundo escuro dos mortos e entra no
mundo luminoso da esperança.
Rui
Ramos
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