quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Chuva Oblíqua

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

Fernando Pessoa


Este poema é típico do Interseccionismo. Foi com ele que Fernando Pessoa ortónimo provocou a grande rotura no lirismo português.

Na primeira estrofe há a intersecção contínua de planos terrestres com planos aquáticos: Esta paisagem - o porto infinito; as flores - as velas do navios; árvores iluminadas pelo sol - o cais sombrio.
De notar que a paisagem terrestre é que figura como real, enquanto o porto e os navios são apenas produto do seu sonho: "o meu sonho dum porto infinito" (primeira estrofe); "o porto que sonho" (segunda estrofe). Verifica-se, portanto, também a intersecção de planos reais com planos oníricos, de realidades presentes com realidades ausentes. Note-se que os planos reais e os planos oníricos estão sempre justapostos antiteticamente:os planos reais estão cheios de sol e os oníricos, cheios de sombra.
Donde se conclui que o poeta projecta o seu estado de espírito no porto sombrio (porto que sonho), em contraposição com a alegria das árvores e flores iluminadas. Todo o poema se gasta na contraposição de duas realidades: a interior e a exterior, Mas a luz está sempre do lado da realidade exterior e a sombra é sempre projectada pela subjectividade do poeta.
Mas, ainda na segunda estrofe, o poeta, num jogo só possível oniricamente, unifica os dois planos antitéticos: "...no meu espírito o sol... é porto sombrio e os navios... são estas árvores ao sol..." Assim, o poeta tenta destruir a relação antitética entre os dois planos, fundindo-os através da intersecção contínua dos seus elementos antitéticos.
É o que se faz na terceira estrofe. O poeta, "liberto em duplo", isto é, pólo unificador de dois planos antitéticos, enumera elementos desses dois planos, que, interseccionando-se, se unificam no seu espírito: "O vulto do cais é a estrada..."; "os navios passam por dentro dos troncos das árvores", tornando-se a horizontalidade igual à verticalidade ("com uma horizontalidade vertical"); "...deixam cair amarras... pelas folhas dentro".
Mas agora, na quarta estrofe, numa nítida intersecção entre o sonho (Não sei quem me sonho!) e a realidade, surge, no fundo da transparência das águas, a paisagem terrestre, as árvores e a estrada, como uma estampa. É a fusão completa dos dois planos.
E, para que não haja dúvidas de que tudo isto se passa na imaginação do poeta, a sombra duma nau mais antiga entra pelo poeta dentro e passa para outro lado da sua alma (a alma do poeta tem duas faces, como já atrás a expressão "liberto em duplo" sugeria).
De notar que, nas últimas estrofes, ao contrário do que sucede no princípio do poema, é o porto que parece mais real do que a paisagem das árvores, que surge como uma imagem no fundo das águas. Há, portanto, a intersecção de planos reais com planos oníricos.
Na última estrofe, a confusão do real e do onírico atinge o cúmulo: há o porto real (o porto que passa) e o porto sonhado, ou onírico (o meu sonho do porto), a paisagem real (esta paisagem) e a paisagem idealizada ou onírica (o meu ver esta paisagem). Tal como em "Impressões do Crepúsculo", também neste poema há o jogo complicado entre o material e o imaterial, só que aqui esse jogo é ainda mais obscuro, porque mais complicado.
Sentimos, no entanto, no fim do texto, a sensação de que o poeta se liberta da realidade, transportando tudo para o campo do sonho, passando para "o outro lado da alma", e atraindo mesmo para esse mundo onírico a imagem da caravela mais antiga dum porto real, mas do passado. A imagem dessa caravela, ao ser como que absorvida na sua imaginação, é bem o símbolo do mundo sensível que se esgota no mundo inteligível do poeta.

Podemos ver aqui a tendência (frustrada) que sempre dramaticamente preocupou o poeta, de unificar o seu "eu", continuamente fragmentado. A unificação só podia fazer-se na inteligência (só existe o que é inteligível). Daí a superação, que se foi operando ao longo do poema, do mundo material pelo mundo onírico.
A complicação do mundo psíquico do poeta está já bem patente neste poema, que pode ter sido para ele uma tentativa, talvez frustrada, de descompressão psicológica, uma tentativa de "passar para o outro lado da minha alma".

A análise deste poema pode muito bem trazer-nos à ideia um quadro de pintura futurista, por exemplo, de Picasso, com todas as intersecções, desconexas e caóticas, de linhas e planos, com todos os contrastes dissonantes de cores,
"Chuva oblíqua" pode ter sido, pois, uma resposta lírica ao movimento futurista internacional, no campo da pintura, da escultura e da música, que tanto espantava e até agredia, o mundo cultural de então.

O poema é irregular quanto à estrutura estrófica, pois é constituído por quatro quadras e uma sextilha. É irregular quanto ao metro, pois há versos desde cinco sílabas (primeiro verso da quarta estrofe) até um de vinte e uma sílabas (terceiro da quarta estrofe). Não existe rima, sendo portanto todos os versos brancos.
A forma está, pois, de harmonia com a organização caótica das ideias: assim como não vimos qualquer simetria no desenvolvimento lógico (ou ilógico?) do assunto, assim também tudo na organização fónica do poema é assimétrico e dissonante. É inútil procurar qualquer ritmo externo; importa é que nós, leitores, nos metamos no ritmo interno que corresponde à corrente da emoção intelectual que empenhou o poeta na sua elaboração.
A forma do poema já é muito semelhante à dos poemas futuristas de Álvaro de Campos, só que, enquanto neste heterónimo predomina a extroversão, neste poema de Pessoa predomina a introversão.
O próprio Fernando Pessoa considera o Interseccionismo de uma "subjectividade excessiva", em contraposição com o Futurismo, que é "dinâmico e analítico por excelência" (carta ao Diário de Notícias de 04-06-1915).



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