segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ela canta pobre ceifeira - Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!


Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa

O poema pode dividir-se em duas partes:
  • na primeira parte (três primeiras estrofes), o sujeito poético descreve a ceifeira e sobretudo o seu canto, canto instintivamente alegre (canto de ave, com curvas de enredo suave). Seria objectiva esta descrição, se o sujeito lírico não introduzisse aqui a sua perspectiva: o canto da ceifeira era alegre porque talvez ela se julgasse feliz, mas ela era pobre e a sua voz era cheia de anónima viuvez. Por isso, ouvi-la alegra e entristece: alegra se atendermos às razões instintivas da ceifeira (como se tivesse mais razões para cantar que a vida), entristece se a virmos na perspectiva total do sujeito poético (pobre ceifeira, no campo e na lida). Há, pois, já nesta primeira parte do texto uma subjectividade que vai adensar-se na segunda parte;
  • Na segunda parte (três últimas estrofes), muito mais subjectiva do que a primeira, o sujeito lírico exprime a sua emoção perante a canção inconscientemente alegre da ceifeira. Podemos subdividir esta parte em dois momentos: o sujeito poético lança primeiramente um apelo à pobre ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente e para que derrame no seu coração a sua voz incerta ondeando, porque esta emoção o obriga a pensar... e a desejar ser ela (a ceifeira) sem deixar de ser ele e ter a sua alegre inconsciência e a consciência disso... De notar que o sujeito lírico aspirava ao impossível, pois ter a consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente. O sujeito poético (segundo momento), ciente desta impossibilidade (a ciência pesa tanto!), lança uma apóstrofe ao céu, ao campo e à canção, personificados, pedindo-lhes que entrem dentro dele, o transformem na sombra deles e o levem para sempre. Paira aqui aquela "dor de pensar" tão habitual nos poemas de Fernando Pessoa. Mais um paradoxo do grande poeta, o qual, tendo sido o que mais se serviu da inteligência, se sentiu sempre um torturado por ser um ser pensante. Daí a sua aspiração pela alegre inconsciência da ceifeira.


A nível morfo- sintáctico, na três primeira estrofes (primeira parte do poema), o tempo verbal predominante é o presente, um presente durativo que projecta a voz doce da ceifeira, deslizando suavemente, na imaginação do sujeito poético, que nela medita. A própria repetição das formas do presente, canta... canta (1.ª estrofe), canta (3.ª estrofe), ondula (no início da 2.ª estrofe e com nítido valor durativo) sugere o deslizar da imagem da ceifeira e do seu suave canto na imaginação do sujeito lírico. A mesma sugestão da passagem lenta do tempo, acomodada à meditação do sujeito poético, é dada pela perifrástica e pelo gerúndio (a cantar, está pensando, ondeando, levando-me).

Na segunda parte do poema predomina o imperativo (canta, derrama, entrai, tornai), para traduzir o apelo do sujeito lírico, em nítida função apelativa da linguagem, e também o infinitivo com valor de optativo (Ah! poder ser tu!...).

De notar a expressividade do gerúndio de aspecto durativo, na frase apelativa: Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando. O sujeito poético quereria a voz da ceifeira perpetuamente na sua inspiração.

Só em duas frases se encontra o presente do indicativo, nesta segunda parte do poema, porque se trata de frases declarativas de tipo parentético ou explicativo: "O que em mim sente está pensando" e "A ciência pesa muito e a vida é tão breve!"

Na primeira parte do poema, por ser essencialmente descritiva, há mais adjectivos do que na segunda, em que predominam os nomes, pronomes e verbos, de harmonia com a função apelativa da linguagem que aí é predominante. A repetição do verbo "cantar " (sete vezes), do nomes "voz" e "canção", o uso do verbo "ouvir" no infinitivo (ouvi-lo), em começo de verso e com o valor de nome (sujeito), põem a sensação auditiva no âmago emocional do sujeito lírico.

O vocabulário do poema é todo ele simples, não ultrapassando, em si, os limites da norma. Mas as palavras, embora simples, estão carregadas de sentidos subtilmente sugestivos. Assim, veja-se a expressividade dos adjectivos: pobre ceifeira, feliz talvez, voz cheia de alegre e anónima viuvez (primeira quadra). De notar os dois pares antitéticos (pobre-feliz e alegre-anónima). Estas relações antitéticas justificam-se porque cada um dos pares tem de um lado a visão parcial da ceifeira (feliz, alegre) e do outro, a visão total do sujeito poético: a ceifeira era feliz e alegre como uma ave pode ser feliz e alegre, inconsciente do seu mal; o sujeito lírico via a sua pobreza, duvidava da sua felicidade (feliz talvez) e via na sua voz uma alegre e anónima viuvez. Note-se que o signo "viuvez" é vulgarmente tomado como símbolo de desamparo e tristeza. É evidente a amarga ironia que a expressão antitética "alegre e anónima viuvez" e o advérbio "talvez", posposto a"feliz", projectam sobre a ceifeira e o seu canto, na primeira quadra.

Os dois adjectivos da segunda quadra (ar limpo e enredo suave) é preciso não os desligar um do outro: o ar é limpo para que nele perpasse a voz suave da ceifeira; a voz cristalina da ceifeira volteia num céu igualmente cristalino.

Atente-se na expressividade plurissignificativa do adjectivo incerta na expressão "incerta voz". O adjectivo está carregado de subjectividade, pois para o sujeito poético a voz era ao mesmo tempo alegre e triste (incerta).

O adjectivo alegre, na expressão "a tua alegre inconsciência", apontando para a parcialidade do conhecimento que a ceifeira tinha da sua vida, está carregado de amarga ironia: o sujeito lírico desejava a inconsciência da ceifeira por ser (para ele) a única causa da sua alegria.

Note-se , finalmente, a subtil expressividade do adjectivo leve (a vossa sombra leve), sugerindo a leveza, a quase imaterialidade desta visão-sonho que o sujeito poético teve da pobre ceifeira.

Para exprimir a imaterialidade, a subjectividade dessa visão poética, há ainda as comparações e as metáforas. A comparação "a sua voz... ondula como um canto de ave" aponta não apenas para a suavidade da voz, mas também para o muito de instintivo, de inconsciente que tem a alegria da sua voz. "No ar limpo como um limiar" acentua a pureza do ar, do céu em que o poeta imagina a voz da ceifeira volteando: a pureza da voz da ceifeira projecta-se no ambiente em que ela se propaga.

Notemos agora a expressividade das metáforas: "...a sua voz ondula" (como se ela enchesse o ar e este fosse o ma voz há o campo e a lida" (como se o perfume do campo e a grácil agitação do seu trabalho enchessem a sua); "E há curvas no enredo suave do som..." (a sugerir a deliciosa melodia da sua canção); "Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando" (como se a sua voz fosse um líquido delicioso de que o sujeito lírico queria ser alagado); "A ciência pesa tanto..." (conotando a "dor de pensar", a dor de ser consciente, de ser o contrário da ceifeira); "Tornai minha alma a vossa sombra leve" (o sujeito de tornai é céu, campo e canção, que o mesmo é dizer a voz cristalina da ceifeira: o sujeito lírico desejava que a sua alma fosse uma sombra leve da ingenuidade e leveza dessa canção).

Para exprimir a contradição entre a alegria da ceifeira e o seu trabalho duro, e as consequentes sensações opostas que ela provocava nele, o sujeito poético usa várias antíteses: "...pobre ceifeira ...feliz"; "...alegre e anónima viuvez"; "Ouvi-la alegra e entristece"; "canta, canta sem razão"; "Ah! poder ser tu, sendo eu!" (mais propriamente um paradoxo); "Ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso" (paradoxo).

Note-se a grande emoção e expressividade que há nas personificações: "...a sua voz cheia de alegre e anónima viuvez" (o nome "viuvez" projecta em "voz" a pessoa da ceifeira, que, parecendo alegre, tinha razões para ser triste, como uma viúva desprotegida); "Ó céu, ó campo, ó canção! Tornai minha alma vossa sombra leve!" (ao mesmo tempo apóstrofe e personificação, admiráveis para exprimir o veemente apelo do sujeito lírico, aspirando a que a sua alma seja apenas uma leve sombra da pureza desses seres, que afinal, personificam a pureza e ingenuidade da pobre ceifeira. Que grande poder sugestivo tem a deliberada confusão da ceifeira com esses três seres personificados (céu, campo, canção), projectando nela o que há neles de limpidez, de pureza e de cristalinidade!...

O sujeito poético serviu-se também do pleonasmo: "Entrai por mim dentro" (última estrofe ). A ideia de penetração está no verbo (entrai) e no advérbio (dentro), para realçar a ânsia do sujeito lírico em ser profundamente imbuído da terna ingenuidade da ceifeira.

De notar a beleza sugestiva da última estrofe: depois da referência ao peso ("a dor de pensar") e à brevidade da vida, o sujeito poético sugere, muito subtilmente, o desejo de se evolar na sombra leve da ceifeira, que também desaparece (passa).

A nível fónico, a quadra em harmonia com o assunto simples, embora intelectualizado.

A rima é sempre cruzada, segundo o esquema rimático ABAB, rima cruzada, rima sempre consoante, com excepção dos versos 1.º e 3.º da primeira estrofe, em que se verifica a rima toante. Note-se o som aberto da rima na última estrofe, sugerindo talvez a limpidez e claridade do céu a que o poeta aspirava. A comprovar a variedade sonora do poema, de harmonia com o canto da ceifeira, há ainda os frequentes casos de aliteração (versos 2.º da primeira quadra, 2.º da segunda, 3.º da terceira, 1.º e 2.º da quadra, 1.º, 2.º e 4.º da quinta, 1.º da sexta).

Os versos são de oito sílabas, notando-se no entanto, uma certa fluidez na sua medida: há uma certa dificuldade em considerar alguns dentro da métrica de oito sílabas. O ritmo, no geral binário, apresenta-se repousado, de harmonia com a suavidade do canto da ceifeira.



2 comentários:

Atelier da Casaleira disse...

olá mena, o resultado da troca de natal ja saiu,confere o nr que foi atribuido e contacta a tua parceira,bjs e bons trabalhos

Rita disse...

Vou já ver!