terça-feira, 8 de novembro de 2011

Fernando Pessoa - Cai chuva do céu cinzento




Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração
.

Fernando Pessoa

Um dia chuvoso e um céu cinzento são o acontecimento real que desperta no sujeito poético a reflexão interior. Associando a chuva que escorre do céu, sem ter "razão de ser", a um sentimento de grande tristeza que se acrescenta à que já tinha, o sujeito poético sente inevitavelmente o peso da consciência dessa dor - "Quero dizer-ma mas pesa". A consciência dessa tristeza exacerbada incomoda-o, fazendo com que o seu pensamento tenha também "chuva nele a escorrer."
A tristeza sentida e a tristeza pensada, associadas, geram no sujeito poético dúvida e incerteza em relação a si próprio. Numa dualidade permanente de sinceridade e fingimento, o sujeito lírico não sabe o que verdadeiramente sente, o que o leva a afirmar "Não sei se estou triste ou não". Perdido no labirinto de si próprio, Pessoa não se conhece.
Este poema não escapa à estrutura paradigmática da poesia do cancioneiro do ortónimo - estrofes regulares - duas quadras e uma quintilha -, com métrica igualmente regular - verso de redondilha maior- , obedecendo a um esquema rimático de raiz popular - rima cruzada. Utilizando uma linguagem simples, o sujeito poético desenvolve o assunto da sua composição a partir da metáfora da chuva; - iniciado com "Cai chuva do céu cinzento", o poema vai-se desenvolvendo e encerra com a imagem da chuva, mas agora "Dentro do meu coração".

A dúvida ou desconfiança em relação aos seus próprios sentimentos assentam no permanente exercício de intelectualização a que submete os sentimentos e aproximam este poema ao poema "Autopsicografia", nomeadamente a analogia entre os versos "chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente" e "Quero dizer-ma mas pesa / O quanto comigo minto".
A indefinição relativamente à sua identidade e a angústia existencial de que Pessoa padece também ecoam noutros textos poéticos e reflexivos - "Continuamente me estranho", ou "Não sei quem sou, que alma tenho".
Os versos "Quero dizer-ma mas pesa / O quanto comigo minto" ilustram a dualidade entre o sentir e o pensar, marca distintiva da arte poética pessoana, evocada em outros textos poéticos como "Tenho tanto sentimento".

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