domingo, 20 de novembro de 2011

Paúis - Fernando Pessoa

IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO


Paúis


Paúis de roçarem ânsias pela minh' alma em ouro...

Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh' alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!

Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado

Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!

Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade

A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade

O meu abandonar-se a mim próprio até desfalecer,

E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...

Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se.

O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta - a lança que finca no chão

É mais alta do que ela... Para que é tudo isto.... Dia chão...

Trepadeiras de despropósitos lambendo de Hora os Aléns...

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de ferro...

Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...

Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!




Há neste poema um conjunto de palavras e expressões que se situam no âmbito de um campo semântico revelador de dois sentimentos do poeta: "paúis" (paúl é um pântano de água estagnada), "ânsias", "empalidece, "corre um frio carnal por minh'alma", "estagnado", "grito de ânsia", "pasmo de mim", "desfalecer", "oco", "dia chão" (dia chato), "sentinela hirta", "silêncios futuros". Tudo isto aponta "para qualquer coisa de estático, projecção focada sobre qualquer coisa de opressivo" (Maria Aliete Galhoz). Mas aponta sobretudo para o poeta que se sente sufocado, oprimido (frio carnal na minh'alma, pasmo de mim, o meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer) e sentindo ainda o desejo de se libertar, embora já frustrado, (grito de ânsia, estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo que não é aquilo que desejo...). O poeta chega à conclusão de que não pode sair do círculo apertado onde se meteu. Por isso, limita-se a olhar ansiosamente os horizontes distantes e, mesmo estes, com limites de ferro: Trepadeiras lambendo os Aléns, silêncios futuros, longes trens, portões vistos de longe... tão de ferro!

São evidentes no poema as influências de Decadentismo-Simbolismo.


"Hora" está aqui como personificação do tempo presente, do aflitivo tempo do poeta, como se fosse uma prisão.

O poeta sente-se encarcerado no presente, que o mesmo é dizer, prisioneiro de si próprio. "Tão sempre a mesma hora" é, afinal, equivalente a: sempre esta minha angústia!... Quando o poeta afirma que "a Hora expulsa de si tempo", quer dizer que o tempo vai passando; mas acrescenta logo que isso é apenas "onda de recuo que invade o seu abandonar-se a si próprio até desfalecer". Isto é, o tempo passa, mas a situação angustiosa do poeta (a Hora) permanece. Por isso, "um mudo grito de ânsia põe garras na Hora" (na angústia presente do poeta).

O passado, o futuro, o presente, estão bem marcados no poema. Referem-se ao passado: "dobre longínquo de outros Sinos", "Ó tão antiguidade", "onda de recuo que invade o meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer".

Esta última expressão leva-nos à conclusão de que as memórias do passado servem ainda para alimentar a angústia do presente. Referem-se ao futuro: "Estendo as mãos para além", "Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns", "...silêncios futuros...", "Longes trens...", "Portões vistos de longe... tão de ferro!" também este olhar para o futuro não suaviza o presente do poeta. Antes, é o presente que proteja a angústia para o futuro que surge como inatingível (portões vistos de longe... tão de ferro!). De notar como aqui o espaço se identifica com o tempo: o poeta sente-se prisioneiro do espaço e do tempo.

O fulcro da angústia situa-se no presente, na Hora. É verdade que o presente, como se viu atrás, lança, por vezes, tentáculos para o passado e para o futuro. Mas esses tentáculos logo se recolhem ao presente carregados de desilusões. Vemos agora mais claramente a razão da maiúscula de Hora: esta é o presente que sintetiza o passado e o futuro, é o poeta no seu cárcere invisível.

Note-se que uma das razões da angústia do poeta é uma espécie de desintegração da personalidade, sensação essa que daria origem à criação dos heterónimos, ao seu "drama em gente": O mistério sabe-me a eu ser outro...


A nível morfo-sintáctico, há a salientar o predomínio de nomes e verbos sobre os adjectivos. Apesar de o poema pretender ser uma descrição do mundo interior do poeta, os adjectivos não ultrapassam uma meia dúzia. A tendência sistemática de tomar os nomes concretos como abstractos e os abstractos como concretos substitui a adjectivação como processo de exprimir o imaterial, o estado indizível da alma. Logo no primeiro verso aparece o nome "paúis" como abstracto (a significar estagnação do espírito) e os nomes abstractos "ânsias" e "alma", pelo contrário, são tomados como concretos (roçar ânsias, alma em ouro). É a tendência de imaterializar o concreto e materializar o abstracto. Como exemplos de nomes concretos tomados por abstractos, basta-nos assinalar, a nível semântico, as sugestivas metáforas - imagens em que se revê a prodigiosa imaginação do poeta: "dobre de outros sinos" (outras recordações); "trigo na cinza do poente"; "Outono delgado de um canto de vaga ave" (note-se como o adjectivo "delgado" concretiza Outono e como o adjectivo "vaga" imaterializa, ou torna abstracto o nome ave); "Que mudo grito põe garras na Hora" (note-se também o paradoxo "mudo grito"; "címbalos de imperfeição"; "onda de recuo"; "A sentinela... a lança..." (sentinela e lança são símbolos de uma força policial que assegura o cerco ao poeta); "Fanfarras de ópios"; "longes trens!; "portões vistos de longe" (símbolos de obstáculos que tornam o ideal inatingível).

São exemplos de abstractos tomados por concretos: "um frio carnal!; "silêncio que as folhas fitam"; (note-se também a sinestesia: fitar o silêncio); "Que pasmo de mim anseia por outra coisa", "A Hora expulsa de si tempo"; "Horizontes fechando os olhos ao espaço (são concretizados horizontes e espaço).

Os verbos estão todos no presente, o presente durativo a sugerir o arrastamento do tempo angustioso do poeta.

De notar que há um grande número de frases elípticas (sem predicado), sempre fechadas por reticências, o que corresponde a ficarem abertas. O poeta entende que é mais belo o que se sugere do que o que se afirma claramente (técnica simbolista). Note-se também os gerúndios, de aspecto durativo, sugerindo o arrastamento da meditação dolorosa do sujeito de enunciação.

Algumas frases dos versos do poema articulam-se por coordenação assindética (parataxe).

Em todo o texto, encontram-se apenas uma meia dúzia de casos de subordinação (hipotaxe), no geral, orações relativas adjectivas. Existe muita coordenação, porque o poeta vai soltando afirmações, aparentemente desligadas, que terminam quase sempre por reticências. As reticências exprimem o que não se afirmou, o que se sugere. A força deste poema, tal como no Simbolismo, não está nas afirmações, mas nas sugestões. O pausado monólogo, que nos parece o texto, é uma espécie de diálogo, entre o poeta e o silêncio. O leitor, para sentir a mensagem poética, tem que se meter entre o grito do poeta e o seu eco (o silêncio). As reticências são esse eco... ou esse silêncio...

É grande a expressividade de algumas personificações: "Silêncio que as folhas fitam em nós"; "Trepadeiras... lambendo de Hora os Aléns"; "Horizontes fechando os olhos ao espaço". Além da abundância de frases elípticas (sem verbo) e inacabadas (com reticências), há ainda, a atestar os processos simbolistas, os muitos exemplos de palavras ou expressões metafóricas, no geral grafadas com maiúsculas, que funcionam como símbolos: Paúis (estagnação), Sinos (recordações), louro trigo (esperanças), a Hora (o tempo presente do poeta), címbalos de Imperfeição (sonoridades enganadoras), Fanfarras de ópios (promessas sonantes e enlouquecedoras). A nível fónico, o que choca, em primeiro lugar, são os versos imensamente longos e irregulares (há-os de 13, 14, 15 e 18 sílabas), o que, de certo modo, está de harmonia com a mensagem poética do texto: expressão de um estado depressivo, que se arrasta indefinidamente, sem se antever uma próxima saída. Apesar de os versos serem extraordinariamente longos, aparecem ainda casos de encavalgamento (versos 2 e 3, 5 e 6, 9 e 10, 12 e 13, 17 e 18). De harmonia ainda com o arrastamento da angústia, os versos são dotados de largos segmentos rítmicos (quase sempre ritmo binário, com excepção dos versos 15, 18 e 22).


Este poema movimenta-se dentro das coordenadas fundamentais do Simbolismo. Publicado na revista A Renascença, em 1913, tem a particularidade de dar, por intermédio da sua primeira palavra paúis, o nome ao Paulismo, o primeiro ismo de vanguarda do post-Simbolismo.

Este poema tem as características de um "texto-programa", isto é, foi escrito com a finalidade de exemplificar a estética da Nova Poesia Portuguesa, poesia de vanguarda, que, segundo o próprio Fernando Pessoa, devia exprimir o vago, a subtileza, a complexidade. O vago e a subtileza já está posta em evidência na análise feita do poema. Quanto à complexidade, consideremos certas frases de sentido paradoxal: "Corre um frio carnal por minha alma", "mudo grito", "a Hora expulsa de si tempo", "recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer", "sabe-me a eu ser ser outro", "oco de ter-se", "Fanfarras de ópios de silêncios futuros".

Notam-se em certas frases desvios sintácticos chocantes na época: "Tão sempre a mesma a Hora"; "Azul esquecido em estagnado"; "Ó tão antiguidade!"; "transparente de Foi" (notar o verbo grafado com maiúscula, com valor de nome, a significar "o passado"); "Portões vistos de longe... tão de ferro".

Tudo isto e os períodos extraordinariamente longos, e as frases em que o material e o imaterial quase se confundem (veja-se, por exemplo: "Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro..."), e uma imagística desmesuradamente arrojada, criadora de frases um tanto enigmáticas, tudo isto impõe o texto como um poema de vanguarda, que ultrapassa em muito a poética saudosista da revista "Águia".



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