quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ó sino da minha aldeia - Fernando Pessoa


Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa

Tema: o passado
A "aldeia" surge como espaço de intimidade, metáfora da interioridade do poeta.
A "alma" concentra os momentos temporais - a audição do som é como que uma síntese dos momentos vividos, feita pela memória.
O tempo pessoano é constituído por uma série de momentos que não se excluem, que aparecem em simultâneo, na sua memória - a saudade traz o passado, que se torna presente.
A associação "alma" / tempo implica a abolição do tempo cronológico, instaura-se um tempo subjectivo, que condiciona a vivência da realidade.


Características estilísticas:
  • adjectivação

Os adjectivos "dolente" e "calma" remetem para a durabilidade do som, que não se apaga na memória do poeta.

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

O adjectivo "lento", associado ao vocábulo "soar", no verso "E é tão lento o teu soar", insere a constatação de uma unidade de fragmentos temporais que não adquirem uma significação própria, enquanto momentos isolados.


  • Os determinantes

Os determinantes possessivos traduzem a interacção "alma" / tempo, a percepção temporal encarada de uma forma subjectiva.

Metaforicamente, estes sugerem, igualmente, a união espaço exterior/espaço interior.

"Cada tua badalada" - espaço exterior

"Soa dentro da minha alma" - espaço interior


  • O advérbio

O advérbio remete para a saudade - o tempo anterior absorve o presente; até o futuro tem a dimensão de passado.

"Que a primeira pancada
Tem o som de repetida."

O vocábulo "errante" (que apresenta um valor adverbial, porque remete para a forma como o poeta "passa") aponta para a ideia de que o som da badalada do sino é uma criação do próprio poeta, que lhe acrescenta a sua carga emocional - o som remete sempre para a mesma sensação (a saudade).


  • O nome

O nome "céu", no verso "Vibrante no céu aberto" sugere a qualidade não mensurável do tempo pessoano. Este é o único espaço físico que aparece, mas cuja amplitude surge através de sugestões da vibração do som, que se perde no ar.


  • As formas verbais

As formas verbais, no presente do indicativo, indicam uma vivência passiva do momento, pela recordação saudosista do passado.


  • O grupo preposicional

A arbitrariedade das relações temporais estabelecidas é sugerida através do grupo preposicional, indicado pela preposição, que é seguida de nomes abstractos.

"Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

(...)

Soas-me na alma distante."


  • A pontuação

A pontuação, no final do verso, produz um ritmo lento, arrastado, que remete para o prolongamento do tempo passado.


Sonoridades:

  • A aliteração

- Aliteração dos sons (d) e (l) na primeira estrofe

"Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,"

A aliteração sugere a distância temporal, pelo prolongamento da sonoridade das consoantes. A líquida (o som l) associa-se à imagem do céu, que se confunde, pela imensidão, com a água, imagem invertida do mesmo, uma vez que o mar é o local onde as formas se espelham.


- Aliteração do som (t) na segunda estrofe

"E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,"

"Mergulhar" no tempo passado, através da evocação da imagem do sino, pressupõe, numa primeira fase, uma imagem visual que é, posteriormente, substituída pelo som da badalada - imagem auditiva - que provoca a aliteração do som (t) na segunda estrofe.


- Aliteração do som (s) na terceira estrofe

"Quando passo, sempre errante,"

A aliteração significa que o som permanece, para o poeta; viver o presente implica, para ele, lembrar o passado.



-Aliteração do som (t) na quarta estrofe

"Vibrante no céu aberto,
(...)
Sinto a saudade mais perto."

O som perpetua-se indefinidamente - o passado absorve o presente.
Ao longo do poema, verifica-se a predominância da vogal aberta (a) e dos sons nasais, que apontam, respectivamente, para a intensidade da inscrição que as imagens do passado têm na alma do poeta e para a consequente entrega a essas imagens, o que pressupõe a passividade face ao tempo presente - esta ideia é sugerida pelo arrastamento rítmico provocado pelos sons nasais.

Vogal aberta (a): aldeia, tarde, calma, badalada, alma, soar, pancada, mais, passo, passado, saudade;

Sons nasais: dolente, dentro, lento, pancada, som, tanjas, quando, sempre, errante, mim, sonho, distante, vibrante, longe, sinto.



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