segunda-feira, 13 de junho de 2011

Os Maias - Linguagem e estilo

44.





"Le Style n'est qu'une manière de penser" (Flaubert)

A prosa portuguesa tem uma história com etapas bem marcadas. António Vieira lançou as suas traves mestras, Herculano e Camilo enriqueceram-na, Garrett e Eça modernizaram-na. A prosa de Eça reflecte a sua maneira de pensar e torna-se um instrumento dúctil e subtil para exprimir o seu modo pessoal de ver o mundo e a vida. Ele próprio considerava a literatura como a arte de pintar a realidade, mas "levemente esbatida na névoa dourada e trémula da fantasia, satisfazendo a necessidade de idealismo que todos temos nativamente e ao mesmo tempo a seca curiosidade do real, que nos deram as nossas educações positivas..." (Eça de Queirós, Notas Contemporâneas).
Eça não teve a frondosa riqueza vocabular de um Camilo, mas soube explorar, a partir de um vocabulário simples, a força evocativa das palavras por meio das mais variadas relações combinatórias e sentidos conotativos. O estilo de Eça é magistralmente estudado por Ernesto Guerra na sua obra Linguagem e Estilo de Eça de Queirós. Vejamos, então alguns dos processos pelos quais Eça conseguiu essa força evocativa, esse verdadeiro magnetismo das palavras.

  • Adjectivo expressivo
A adjectivação é em Eça um poderoso agente evocativo, reflectindo a maneira estética de ver a realidade e dando origem a uma linguagem precisa e ao mesmo tempo aberta à imaginação. Exemplifiquemos:

a) Adjectivação imprópria
"Amaro, com o odioso guarda-chuva entre os joelhos"
. Note-se que o adjectivo odioso, aplicado a guarda-chuva, tem a intenção de atingir Amaro (Hipálage). O mesmo se verifica na frase: "Propício tem um leito de ferro filosófico e virginal".

b) Adjectivação animista ou prosopopeica
"A pressa esperta e vã dos regatinhos e todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto". "Os velhos carvalhos violentos e proféticos, os choupos desfalecidos, onde o vento vaga aflito..."
Com esta fusão do mundo físico com o moral, tão do agrado de Eça, a natureza ganha vida e solidariza-se com o homem. Veja-se também o animismo presente na descrição do Ramalhete e espaço circundante (página 710).

c) Adjectivação hiperbólica
"Era uma velha hedionda..." "...as suas digestões monstruosas..." "Caminhou para ela com passos marmóreos que faziam oscilar o tablado".
Estes exageros dão-nos, no geral, imagens caricaturais, burlescas.

d) Adjectivação antitética
"Ela mostrava o seu lindo espanto" (fingia-se espantada para mostrar a sua beleza).
"...ri num doloroso riso deste mundo burlesco e sórdido".
Estes grupos antitéticos exprimem a síntese de sensações contraditórias.

e) Adjectivação de linhas imprecisas
"Abria um olho vago..." "...uns sons de piano dolente e vago".
Eça emprega centenas de vezes o adjectivo vago, para criar um ambiente de mistério.

f) Adjectivação binária ou dupla adjectivação
"Salomé dançou nua e deslumbrada". "Os olhos do gato fixaram-no fosforescentes e aterradores".
De notar, nos dois pares, que o primeiro adjectivo exprime uma característica física e o segundo, moral. Trata-se de percepções duais, são as duas faces da realidade.
"Aquela mulher que qualquer podia ser, sobre um sofá, fácil e nua".
Aqui já é o primeiro adjectivo que exprime uma nota subjectiva e o segundo, objectiva.

g) Adjectivação adverbial
"Adélia fumava um cigarro lânguido".
O adjectivo lânguido liga-se a Adélia (lânguida) e à acção de fumar (languidamente).

A colocação do adjectivo obedece não apenas ao sentido, mas também ao ritmo da frase.
Na frase "Ela mostrava o seu lindo espanto", o adjectivo vem antes do nome, adjectivação anteposta, porque o que pretende realçar é a beleza que o espanto confere à senhora; mas na frase "via moverem-se ali mil figuras voluptuosas e sinistras, trágicas, disformes, irónicas, apaixonadas, ciosas e lívidas", a sequência dos adjectivos já obedece mais ao ritmo da frase.
Na adjectivação binária é vulgar colocar um adjectivo antes e outro depois do nome, adjectivação anteposta e posposta): "vago sorriso exausto", em vez de "vago e exausto sorriso", ou de "sorriso vago e exausto".

  • Advérbio expressivo
Como palavra volumosa que é, o advérbio de modo serve admiravelmente o ritmo e a musicalidade da frase: "Falou de si constantemente, irresistivelmente, imoderadamente". Tem além disso, como como o adjectivo, um grande poder sugestivo, como se pode ver pelas seguintes modalidades:

a) Advérbio impressionista
"Quando entrava no café toda a gente se curvava palidamente sobre o periódico" (o advérbio atinge o sujeito e a acção: curvava-se e empalidecia).

b) Advérbio metafórico (de uso impróprio)

"Não ousava fumar no café... devia recolher-se virginalmente à noitinha (como se fosse virgem).
"...foi levá-lo preciosamente a Coimbra" (como se fosse uma coisa preciosa).

c) Advérbio de efeito cómico

"Beatas com grossos rosários enfiavam gulosamente para a Igreja"; "estava sentado na chaminé cuspilhando tristemente para as cinzas".
O cómico está no facto de o advérbio gulosamente (que se refere sempre ao material, à comida) estar aqui ligado ao espiritual (Igreja); e o advérbio tristemente (que em si denota o psíquico) estar aqui ligado a cuspilhando (acção grosseiramente material).

d) Advérbio aliado ao objectivo

"Carlos achava esta palavra melacolicamente estúpida" (melancólica e estúpida).
"horrivelmente bem falante" e "atrevidamente tímida" (antitético em relação ao adjectivo).
"cabelos magnificamente negros (superlativação).

e) Advérbio antitético do verbo
"Dâmaso sorria também lividamente"
"O grande Dornan mamava majestosamente um imenso charuto". Note-se que o advérbio majestosamente, que sugere a ideia de dignidade, se liga precisamente à forma verbal mamava que no contexto aponta para uma atitude burlesca.

  • Verbo expressivo
O verbo surge não apenas como enunciador da acção, ou como elemento de ligação, mas também como metáfora, criador de um ambiente de fantasia e de mistério, ou conotador do burlesco, como se poderá constatar nas seguintes modalidades:

a) Verbo expressivo por fugir ao trivial, ao usado
"Maurício atirou um gesto desdenhoso e largo que sacudia o mundo".
"André ondeou um gesto de desconsolo".
Há a tendência de pôr de parte os verbos já gastos de elocução, como dizer, exclamar, responder, banindo-os no discurso directo: "Julião coçou convulsivamente a caspa e erguendo-se:
- Está muito bom, está muito bom, conselheiro"; ou suprimindo-os, também, no discurso indirecto livre:
"Ega contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, ali no Ramalhete...
- Há cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Espanhol, mas ainda nem mesmo abri a mala...
Decerto! Havia o quarto em cima, onde ele estivera depois de deixar a vila Balzac".
Este último parágrafo é a resposta de Carlos e discurso indirecto livre, suprimindo-se: Carlos respondeu que decerto...

b) Verbo de tom cómico e caricatural

"...o sacristão bramiu um requiem tremendo";
"A tia Patrocínia uivou de furor";
"Madame F. apagou o riso toda séria";
"...é um bárbaro besuntado com literatura do séc. XVIII..."

c) Verbo de valor hiperbólico

"Uma formidável moça de enormes peitos entrou esmagando o soalho..."

d) Verbo sugestivo por dele dependerem dois elementos antitéticos, um físico, outro moral: "Rufino reluzia todo de orgulho e de suor".

  • Uso dos tempos verbais
Eça na sua fase realista/impressionista via a realidade no seu constante fluir. Daí a supervalorização do imperfeito verbal, o tempo do devir inacabado. Com a mesma intenção valorizou também a gerúndio, que igualmente exprime a continuidade, o fluir. A linguagem torna-se assim mais impressionista, mais cinematográfica, criando no leitor a ilusão do deslizar dos acontecimentos, da continuidade da vida. O imperfeito é o tempo usado precisamente no discurso indirecto livre, que constitui uma das inovações mais notáveis da prosa de Eça, libertando a frase de verbos declarativos, aproximando-a da linguagem falada, quebrando a monotonia do discurso directo/indirecto e permitindo ao narrador dissimular-se por detrás das personagens por meio da focalização interna.

  • A frase
Eça de Queirós prosseguiu o trabalho de modernização da prosa portuguesa, já começado por Garrett. Assim. e tal como ele, evolucionou para o uso das frases curtas, para a preferência da ordem directa, para o tom oralizante do diálogo e para a variedade de discursos com a vulgarização do discurso semi-indirecto ou indirecto livre.
Eça, na sua contínua luta por conseguir uma forma de expressão bela e expressiva, debateu-se perante uma antinomia, balançando-se entre dois pólos: o Realismo/Naturalismo e o Parnasianismo/Simbolismo (que nesse tempo já vogorava na França). É o que ele exprimia por esta frase que foi o seu lema de artista: "Sobre a nudez forte da verdade (realismo), o manto diáfano da fantasia" (simbolismo).

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