segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Arrojos - Cesário Verde


Arrojos


Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.


Se ela deixasse, extáctico e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.


Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.


Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.


Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.


Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.


Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.


E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde

Mignonnes - delicadas, graciosas, pequenas
Laura - a mulher celebrada por Petrarca, apresentada como amada inacessível.
Martinho - café lisboeta, frequentada por muitos intelectuais.


"Arrojos" foi publicado em conjunto com dois outros poemas sob o antetítulo comum "Fantasias do Impossível".
Os dois primeiros versos de cada uma das quadras do poema constituem a apresentação de uma fantasia de uma paixão feliz, paixão que nunca se tornará realidade (o carácter hipotético dessa paixão é realçado pelo emprego das orações condicionais). O antetítulo "Fantasias do impossível" remete precisamente para a impossibilidade de concretização dessa paixão.

A figura feminina apresenta os seguintes traços caracterizadores:
- olhar cortante (glacial): "olhos que ferem como espadas" (v. 2);
- mãos pequenas e graciosas: "mãos mignonnes" (v.6);
- amada inacessível : "a Laura" (v. 17);
- influência perversa sobre o sujeito poético: "a Laura dos meus loucos desvarios" (v. 17);
- arrogância e vaidade: "soberba" (v. 18);
- insensibilidade e indiferença: "fria" (v. 18);
- distância e irrealidade: "aquela visão da fantasia" (v. 29);
- pele muito branca (e macia): "peito alvo como arminho" (v. 30).

A hipérbole presente nos versos: "Eu com um sopro enorme, um sopro imenso / Apagaria o lume das estrelas." (vv. 7-8) sublinha a intensidade da paixão (tão grande que "Apagaria o lume das estrelas"), bem como representa a força da paixão feliz capaz de conferir poderes sobre-humanos, que permitiriam ao sujeito poético dominar as forças da natureza.

Os dois últimos versos revelam a amarga ironia do sujeito poético, uma vez que, tendo consciência de que esta paixão é impossível de realizar, o sujeito lírico afirma que estaria disposto a abandonar o seu hábito quotidiano de ir ao café, se o seu amor fosse correspondido. A ironia também nasce de algo paradoxal: comparar uma grande paixão com uma circunstância do quotidiano, o ir ao café.

Há uma relação de claro desequilíbrio entre o sujeito poético e a amada. Enquanto o sujeito lírico a ama e idolatra, está disposto a por ela conquistar o mar, as estrelas, os relâmpagos, o azul do céu, o sol, os rios, a domar a terra e as montanhas e a erguer os vales, a amada assume uma atitude fria, distante e inacessível. A paixão correspondida existe apenas na imaginação do sujeito poético.

1 comentário:

Anónimo disse...

muito obrigado pela análise, está excelente