domingo, 11 de setembro de 2011

Noite fechada - Cesário Verde


Noite Fechada

L.

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho.

O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E, ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando nisto.

E tu que não serás somente minha,
Às carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar!


Cesário Verde

O sujeito poético e a "jovial senhora" passeiam pelas ruas da cidade, desde o entardecer, o pôr-do-sol, até ser "noite fechada".
Saíram "próximo ao sol posto", percorrendo "altas ruazinhas", tendo por companhia um "gás armarelado" (a iluminação típica do final do século XIX), "um bico de gás que abria em leque" e a lua que "dava trémulas brancuras", terminando já noite "dormente e esbranquiçada".

Podemos deduzir que o sujeito lírico nutria um sentimento de amor, de atracção, de desejo por esta mulher/criança, típica da cidade. Todo o seu aparato, a "flor" da sua pele, a sua luva, o seu véu atraem-no (perigosamente) como um íman. Esta mulher fatal, "pálida" e "perfumada" é, contudo, uma mulher, uma mulher distante e impassível, provocando uma certa humilhação ao homem que lhe segue os passos.
O sujeito poético não esqueceu as coisas que ela lhe disse ("Não me esqueço das coisas que disseste"), assim como o seu desgosto, ficando "cada vez mais magoado" à medida que erravam por travessas e vielas. Ela não é capaz de amar, é distante e indiferente aos sentimentos do sujeito lírico, por isso, é capaz de sorrir (ironicamente) de tudo o que vê, não conseguindo retribuir o amor que ele sente por ela. No entanto, há que fugir desta lúbrica mulher, deixando de a amar já que ela não o ama ("Nunca mais amarei, já que não amas").

O passeio efectua-se no espaço citadino, espaço privilegiado para a crítica do poeta. Deste modo, a referência à iluminação típica da época ("gás amarelado", "bico de gás que abria em leque"), às "ruazinhas" e "cidadezinha" (diminutivos irónicos, sarcásticos), às vizinhas que "às janelas palravam" (verbo expressivo), aos "cemitérios ricos, e o cipreste / Que vive de gorduras e de mortes!" (devido à grande quantidade de mortos, vítimas da peste que assolou a cidade de Lisboa, no final do século XIX), assim como a indiferença desta mulher citadina (que vive numa "gaiola" de um 3.º andar) são exemplos de manifestação crítica em relação ao espaço onde se encontra.

As apóstrofes presentes na estrofe 14 referem-se à presença da figura feminina neste poema. A expressividade resulta da adjectivação anteposta e posposta e da antítese senhora/criança. Inicialmente, surge a "jovial senhora perfumada" que encanta e atrai o sujeito poético, com o seu aspecto de mulher fatal; por outro lado, ela revela-se uma "terrível criança", na medida em que parece "brincar# com os sentimentos do sujeito lírico.

A passagem do momento presente para o passado recente ("Lembras-te tu do sábado passado") é feita através da memória, da lembrança do sujeito poético. Qualquer coisa aconteceu que o fez relembrar, de um modo triste, os momentos passados com uma mulher distante e fria. Ele não esquece as coisas que ela lhe disse, não esquece o seu desgosto (estrofes 3 e 4), mas não esquece também a atracção que ela lhe provocou ("E sinto ainda a flor da tua pele, tua luva, teu véu, o que tu és!"). A sua indiferença provoca uma revolta no sujeito lírico, que decide deixar de amar esta mulher-demónio que não será só dele.

O recurso ao campo surge, na penúltima estrofe, como salvação das suas mágoas, humilhações vividas na cidade, a nível sentimental. Após a frustração amorosa vivida naquele sábado e na cidade, o sujeito poético tenta abafar as suas mágoas num espaço limpo, puro e saudável como as pessoas que dele fazem parte. Ele escolhe o campo para se livrar das tentações perigosas da cidade.

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