sábado, 17 de setembro de 2011

De Verão - Cesário Verde


DE VERÃO

I
No campo; eu acho nele a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a acção.
Esta manhã, saí com minha prima,
Em quem eu noto a mais sincera estima
E a mais completa e séria educação.

II
Criança encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lírica excursão, de intimidade.
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade.

III
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: «Fumas? E as fagulhas?
Apaga o teu cachimbo junto às eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quanto me alegra a calma das debulhas!

IV
E perguntavas sobre os últimos inventos
Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios vivos, corpulentos,
Como nos fazem grandes barretadas!

V
Voltemos! No ribeiro abundam as ramagens
Dos olivais escuros. Onde irás?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
E, silencioso, eu fico para trás.

VI
Numa colina brilha um lugar caiado.
Belo! E, arrimada ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéu de palha, desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado,
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.

VII
Nisto, parando, como alguém que se analisa,
Sem desprender do chão teus olhos castos,
Tu começaste, harmónica, indecisa,
A arregaçar a chita, alegre e lisa,
Da tua cauda um poucochinho a rastos.

VIII
Espreitam-te, por cima, as frestas dos celeiros;
O sol abrasa as terras já ceifadas,
E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés decentes, verdadeiros,
As saias curtas, frescas, engomadas.

IX
E, como quem saltasse, extravagantemente,
Um rego de água, sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a gentil, a inteligente,
Depois de bem composta, deste à frente
Uma pernada cómica, vulgar!

X
Exótica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas,
Caídas das carradas no salmejo.
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas.

XI
Elas, em sociedade, espertas, diligentes.
Na natureza trémula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes
E atulham, por instinto, previdentes,
Seus antros quase ocultos na parede.

XII
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
«Tu não as esmagares contra o solo!»
E ria-me, eu ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E de óculo deitado a tiracolo!

(...)
Cesário Verde

Este poema relata um passeio do sujeito poético pelo campo, acompanhado de uma prima ("lírica excursão, de intimidade"), no qual se inclui o episódio das formigas trabalhadoras.

As personagens intervenientes são o sujeito lírico e a prima. O sujeito poético é claramente um homem citadino (usa um traje inadequado ao campo): "Eu de jasmim na casa do casaco / E de óculo deitado a tiracolo", apresentando-se, assim, como o perfeito "dândi" num passeio rural, que fuma cachimbo e vê o campo como um passatempo, mas também como fonte de inspiração ("No campo; eu acho nele a musa que me anima"); considera-se, ainda, "ocioso, inútil, fraco", em comparação com as formigas que "Arrastam bichos, uvas e sementes; / E atulham, por instinto, previdentes, / Seus antros quase ocultos na parede"; por último, revela, talvez, pouca sensibilidade, ao rir do cuidado da prima para não pisar as formigas. Enfim, trata-se de um proprietário rural de visita à quinta, a quem os trabalhadores "fazem grandes barretadas!", em sinal de respeito, e que observa a sua vinda com orgulho: "Verdeja, vicejante, a nossa vinha".
A prima é "Criança encantadora", meiga e educada ("Em quem eu noto a mais sincera estima / E a mais completa e séria educação"); é cuidadosa, dizendo ao primo "Apaga o teu cachimbo junto às eiras", brincalhona e vaidosa ("Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!"), querendo enfeitar-se, como qualquer criança, com as ginjas; adora a natureza, aprecia o ritmo dos trabalhos do campo ("Quanto me alegra a calma das debulhas!") e respeita a natureza no seu todo, desviando-se das formigas para não as pisar ("Tu não as esmagares contra o solo!"). Usa "um chapéu de palha, desabado" e apoia-se no cabo de uma sombrinha.

O espaço físico, o campo, é caracterizado, ao longo do poema, como "a musa", detentor de "paz, salubridade", um espaço repleto de "claridade", "robustez", "acção", desenhado através das leiras e das eiras e onde os saloios cantam aos bois. É o espaço da "calma das debulhas", das "aldeias tão lavadas", dos "Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!", dos "saloios vivos, corpulentos", das "ramagens / Dos olivais escuros", dos rebanhos que regressam das pastagens, dos "milhos, nuvens e miragens", dos lugares calmos e das vinhas verdes e vicejantes.
O sentido associado a este espaço, ao campo, é claramente positivo. O campo é o espaço da claridade, um lugar solar, saudável, robusto, cheio de força e de viço. Este é, assim, visto como um espaço edénico, uma espécie de paraíso, pleno de vida e transmitindo felicidade.

Na estrofe 5, encontram-se várias aliterações: no 1.º verso, em "Na ribeira abundam as ramagens" e no 3.º e 4.º versos em "Regressam os rebanhos das pastagens; / Ondeiam milhos, nuvens e miragens" do som nasal (n e m e do som r); há ainda uma interrogação retórica ("Onde irás") e uma imagem do movimento dos campos de milho e das nuvens no céu, fustigados pelo vento, sugerida pela forma verbal em "Ondeiam milhos, nuvens e miragens". O conjunto destes recursos expressivos confere a esta estrofe um visualismo e um movimento que a transformam numa espécie de quadro/fotografia do espaço referido.
Na estrofe 6, em "Numa colina azul brilha um lugar caiado", é de notar a presença de uma metáfora, na associação da brancura do lugar com o brilho da "colina azul"; em "Belo!", de uma frase exclamativa que culmina a descrição das belezas do campo; do diminutivo, com toda a conotação de ternura, na alusão à "sombrinha" da prima; e, por último, em "Verdeja, vicejante, a nossa vinha", a aliteração do (v).

O episódio das formigas pode ser visto como uma espécie de alegoria: as formigas "em sociedade, espertas, diligentes" são uma metáfora do trabalho, da dedicação em prol da comunidade e também do campo, enquanto que o sujeito poético "ocioso, inútil, fraco / (...) de jasmim na casa do casaco / E de óculo deitado a tiracolo!" poderá ser entendido como a metáfora de cigarra, que canta no Verão e no Inverno, quer viver à custa dos outros, chegando, por vezes, a sucumbir... O sujeito poético, pelas características que apresenta, pode também ser o símbolo da cidade.

O carácter visualista e o predomínio das impressões visuais estão bem patentes ao longo de todo o poema, pois no decurso da "lírica excursão", o sujeito poético revela-se sensível às belezas do campo, que enaltece na sua descrição: "Que aldeias tão lavadas!" (de notar o emprego do advérbio de intensidade "tão", reforçando a limpeza das aldeias); "Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!" (note-se a repetição do adjectivo); "Olha: os saloios vivos, corpulentos" (apelo ao destinatário para que veja mesmo). Os segmentos textuais "Na ribeira abundam as ramagens / Dos olivais escuros", "Regressam os rebanhos das pastagens", "Ondeiam milhos, nuvens e miragens", "Numa colina azul brilha um lugar caiado", "Verdeja, vicejante a nossa vinha", "No atalho enxuto, e branco das espigas (...) / Esguio e a negrejar em um cortejo, / Destaca-se um carreiro de formigas.", "Arrastam bichos, uvas e sementes; / E atulham, por instinto, previdentes, / Seus antros quase ocultos na parede." constituem uma sucessão de imagens visuais. Finalmente, o sujeito poético fica silencioso - "E, silencioso, eu fico para trás" - provavelmente para registar, guardar bem no seu íntimo, todas as impressões visuais, todas as imagens daquele paraíso e, para isso, precisa de silêncio, de recolhimento.


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