sexta-feira, 1 de junho de 2012

Bocas roxas de vinho - Ricardo Reis







Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;


Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.


Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.


Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas


Ricardo Reis 







Lídia, a companheira de "viagem" de Ricardo Reis é a destinatária deste poema, a quem o sujeito poético ensina a conter qualquer atitude emotiva - "fiquemos, mudos". Assim, a relação que o sujeito lírico estabelece com Lídia é pautada pela contenção, pela aceitação do destino inexorável - "Eternamente inscritos /Na consciência dos deuses." - deixando-se "ir no rio das coisas", ou seja, demitindo-se de qualquer vivência horaciana próxima do carpe diem, expressa em toda a primeira estrofe - um quadro que ele pinta com as tintas dos deuses.
A metáfora "negra poeira" encerra um sentido duplamente negativo: "negra", enquanto dolorosa, e "poeira", enquanto resíduo inútil. Deste modo, a "negra poeira" que os homens "erguem das estradas" simboliza a inutilidade de qualquer esforço humano no seu percurso existencial.
Na poética de Ricardo Reis, a relação com o tempo é definida pela consciência da precariedade e fugacidade da vida, o que o leva a deixar-se "ir no rio das coisas", sem nada mais exigir, seguindo o exemplo de "aqueles / Que nada mais pretendem".
O vocabulário empregue apela claramente às sensações - "bocas roxas", "cestas brancas", "Nus, brancos antebraços" - num convite a viver o momento como um "quadro" mudo, em que ambos se abandonam ao prazer comedido; esta ideia de abandono e contenção é expressa pelas formas verbais "Deixados" e "fiquemos".
Retomando tudo o que anteriormente foi referido, este poema é exemplo de uma filosofia de vida epicurista eivada de estoicismo: Ricardo Reis convida Lídia a gozar suavemente o presente - o momento - sem nada mais exigir que a sua fruição.



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