quarta-feira, 7 de março de 2012

Eu nunca guardei rebanhos - Alberto Caeiro


Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva toda.


Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural

Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

O sujeito poético visualiza-se em termos metafóricos: um pastor, de cajado na mão, guardando o seu rebanho. Metonimicamente e continuamente, surge a metáfora da escrita, em que o pensamento é o próprio papel em que são traçados (retidos de cor) os versos bucólicos (penúltima estrofe). E o rebanho aparece como uma metáfora das "ideias", pois ao olhar para aquele são estas que o poeta vê - e reciprocamente -, o que a figura poética do quiasmo sugere de uma forma justa, através da simetria "ideias - rebanho" e "Rebanho -ideias".

O poema situa-nos desde o início nos domínios da metáfora: o pastor-poeta, o rebanho-ideias, o papel-pensamento. E é, também, todo ele, doutrinário. É o próprio Alberto Caeiro que se nos apresenta:

  • Como o poeta da objectividade das sensações, que pretende eliminar os vestígios da subjectividade, usando uma linguagem simples, directa e natural:

"E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural

Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado."


"Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado. "

  • Como o poeta da Natureza e do olhar:
"Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar. "

"E (...) desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),"

  • Procurando negar a utilidade ou valor do pensamento e construindo uma anti-filosofia:

"Pensar incomoda como andar à chuva ".

"Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes."

"E (...) desejo às vezes
(...), ser cordeirinho".

Mas há outra figura de estilo também muito relevante neste texto - a comparação. Os exemplos que se seguem vêm demonstrar a tendência ou a busca da objectividade:

"Mas eu fico triste como um pôr do sol".

"E se sente a noite entrada
como uma borboleta pela janela".

"Pensar incomoda como andar à chuva".

"E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende".

De salientar também o vocabulário simples e o ritmo prosaico. Alberto Caeiro fala-nos num "ritmo moderado, como um deslizar vagaroso e contínuo, que podemos acompanhar com agrado. (...) Calma e movimento: andar, este caminhar sem rumo, surge ao lado de sentar-se. Os dois verbos têm idêntica importância. Estão ao lado um do outro como "seguir - olhar", assim como o sol, o vento, a Natureza, o olhar que se contempla a si próprio. Este movimento nunca pára. As frases deslizam tranquilas perante o nosso olhar interior, sem paragens, sem interrupções.
Encontra-se já aqui uma diferença assinalável em relação à poesia ortónima de Pessoa, que não oferece qualquer garantia, qualquer segurança, e na qual não há o mínimo progresso. Nesta estranha síntese da calma e de movimento esconde-se o segredo da poesia de Caeiro. A simbiose de aparentes contrastes forma a base da sua originalidade e do seu ineditismo.
(...)
Quer Caeiro descanse, quer caminhe, as suas relações com o mundo mantêm-se quase sem alteração. (...) Tudo parece nitidamente delimitado, nada é desmaiado e pouco claro. Cada imagem que os olhos do viandante abrangem transforma-se num todo.
É surpreendente a frequência com que aparece a conjunção "ou": pensar ou sentir, viver ou escrever, repousar ou modificar-se, o seu estar lado a lado, ou até um com o outro, tornam-se possíveis em Caeiro. Pessoa dizia "nem, nem", "à parte", "entre", etc., onde Caeiro constrói o seu mundo com "e" e "ou".
(...) Como se tivesse unido aquilo que nunca pode reconciliar-se. O pastor escreve e pensa versos a passear por assim dizer como uma actividade concomitante. O gerúndio (olhando, vendo, sorrindo) é a forma verbal preferida desta ocupação acessória, mas também de simultaneidade.
(...)
Mais frequentes ainda que as formas de gerúndio são verbos conjugados no presente: assinalam concisamente as acções ocasionais do viandante e seguem-se rapidamente uns aos outros. (...) Muitas vezes uma frase corresponde a um verso, que contudo pode ser de tamanho diferente. A próxima linha diz já (...) qualquer coisa diversa. As orações subordinadas não são frequentes, pois as asserções de Caeiro são geralmente directas e sem afectação. Os adjectivos, advérbios, etc., são quase eliminados. Nos antípodas, pois, de Pessoa, cuja lírica era rica em parênteses, inserções, subordinações de toda a espécie, e cujo pensamento era múltiplo.
(...)
A antinomia em Fernando Pessoa, que o fazia falhar continuamente, era, no final de contas, o desacordo entre o consciente que pensa e a vida que se não deixa pensar, uma perturbação nas relações entre sujeito e objecto. Ora Caeiro parece ter encontrado uma solução, uma reconciliação dos opostos.
(...)
Talvez Caeiro seja (...) a personificação ansiosamente esperada de um sonho ideal até então insatisfeito".



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