sábado, 24 de março de 2012

O guardador de rebanhos - Alberto Caeiro



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes,
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva toda.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Eu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural

Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro


Este poema começa assim: “Eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse”, mas a seguir, Alberto Caeiro explica-se melhor, dizendo-se “pastor por metáfora”:

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Logo neste primeiro poema , O Guardador de Rebanhos, Caeiro dá o tom: ele é um ser natural, que vive no seio da natureza (assim se explica a sua imagística e vocabulário simples, do campo semântico da natureza – rebanhos, pastor, vento, sol, pôr-de-sol, como uma borboleta, ruído de chocalhos); que tem “pensamentos contentes”, mas tem pena de saber que são contentes, porque “pensar incomoda como andar à chuva”.

Acrescenta que não tem ambições, nem a de ser poeta – “Ser poeta / é a minha maneira de estar sozinho”; saúda os que o lerem e deseja-lhes sol e chuva, “quando a chuva é precisa”; que tenham, em suas casas uma janela aberta e uma cadeira onde se sentem a ler os seus versos e que, ao lê-los, “pensem que (é) / sou qualquer coisa natural”.

O sujeito lírico afirma nunca ter guardado rebanhos, “Eu nunca guardei rebanhos”, mas todo o poema nos sugere que ele se comporta como se efectivamente os guardasse e que procede, mesmo, se bem que ficticiamente, por artes do fingimento, como um guardador de rebanhos (“é como se os guardasse”). Não é, então, um pastor verdadeiro, real, pois ele afirma-nos convicto “Eu nunca guardei rebanhos”, mas comporta-se como se o fosse , “Mas é como se os guardasse”.

Há realmente uma parte de si, a alma, que age como um pastor e é, no poema, caracterizada como sendo profundamente íntima da natureza, pois “Conhece o vento e o sol”, “E anda pela mão das Estações / a seguir”, marcada pela sedução da viagem, “e a olhar”, preocupada sobretudo com o que vai observando – de notar a personificação. Por causa da sua alma, o sujeito poético tem acesso a “Toda a paz da Natureza sem gente” que vai sentar-se a seu lado.

“Mas eu fico triste” diz o sujeito lírico, explicando que a sua tristeza acontece quando um bem, por exemplo, o sol que ao pôr-se, desaparece, e se converte num mal, “E se sente a noite entrada“, como se se tratasse de uma desilusão que chega, imperceptivelmente, “Como uma borboleta pela janela”. De salientar as aliterações e jogos de sons para exprimir o modo como o pôr-do-sol acontece à entrada da noite, entristecendo o sujeito poético. Este pôr –do-sol é “Para a nossa imaginação” sempre mais excessivo, bem pior do que é na realidade. Esta tristeza do sujeito lírico é natural e justa, por isso ele conforma-se, não se excede, “Mas a minha tristeza é sossego” “E é o que deve estar na alma” quando a alma se ocupa em pensar , “Quando já pensa que existe”, não dando pela natureza, pelas flores que as mãos colhem, “E as mãos colhem flores sem ela dar por isso”.

A alma do sujeito poético encontra-se dividida, por uma lado, está devotada à simplicidade, à paz, à natureza, à sensibilidade, por outro lado, vota-se à tristeza, ao pensamento. Merece-se ser triste, confessa o sujeito lírico, quando o pensamento invade a alma. É que os seus pensamentos aparecem “com um ruído de chocalhos”, isto é de forma ruidosa, destituídos de simplicidade e “para além da curva da estrada” são contentes, obstinados. Ele não lamenta que os seus pensamentos sejam contentes, eles sê-lo-iam de qualquer modo, “Em vez de serem contentes... / Seriam... contentes. O que ele lamenta é “Só tenho pena de saber que eles são contentes / Porque, se o não soubesse, / Em vez de serem... tristes, / Seriam alegres”. Tudo isto, porque pensar incomoda, incomoda tanto como “andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais”., logo é o pensamento que gera a infelicidade e não a tristeza.

O sujeito poético confessa “Não tenho ambições nem desejos / Ser poeta não é uma ambição minha”. Ser poeta “é a minha maneira de estar sozinho”, acrescenta. “Às vezes”, tem um desejo : “ser cordeirinho” (simbolizando um ser pacífico, natural, ingénuo, que não pensa), Ou ser o rebanho todo” para melhor sentir a felicidade:

Para andar espalhado por toda a encosta

A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),

E justifica-o com a necessidade de ultrapassar a tristeza que por vezes o assola, representada simbolicamente pelo pôr-do-sol (o pôr do sol do verso 36 está relacionado com o pôr-do-sol do verso 9), da nuvem que “passa a mão por cima da luz” (personificação) ofuscando-lhe a felicidade, do silêncio que “corre... pela erva fora.

O sujeito lírico prossegue a sua caracterização enquanto pastor: ele é pastor quando escreve versos na realidade e escreve versos no pensamento quando é pastor. Sente “um cajado nas mãos”, símbolo do pastor, mas também da sua segurança, da sua estabilidade, e vê-se no cimo de um outeiro olhando o rebanho (rebanho = ideias -> metáfora) e exigindo ingenuidade.

“E vejo um recorte de mim” é mais uma manifestação da dispersão que aflige o sujeito poético, ele não é tudo aquilo que quer ser, eles sente-se dividido. E é nessa condição de pastor/poeta, sem outra ambição que não seja a de tentar ultrapassar a tristeza, a nuvem, o silêncio, que ele, ingénuo e simples, deseja saudar todos os que lerem os seus versos. Ele é um mestre muito procurado por todos os que se interessam pela sua doutrina, pela sua filosofia, saudando-os e brindando-os com tudo o que é simples e objectivo, pacífico e suave, ingénuo e natural: o sol, a chuva, a casa, a janela aberta, a cadeira predilecta, a árvore antiga, a criança despreocupada...

E o que ele deseja, unicamente, é fazer-se passar por qualquer coisa natural, completamente alheia ao acto de pensar:

E ao lerem os meus versos pensem

Que sou qualquer coisa natural

1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

É uma delícia ler as tuas análises.
Tu sabes tudo de cor, como disse um aluno teu...
Beijo, querida Mena.