sábado, 30 de julho de 2011

Cesário Verde - A mulher


Deambulando por vários espaços, Cesário Verde oferece-nos uma galeria de figuras femininas com uma individualidade muito própria, que é negada às restantes personagem que povoam a sua poesia (lojistas, carpinteiros...).

Como vê, então, o poeta algumas dessas figuras femininas:
  • as varinas, as trabalhadoras genuínas, a quem o sujeito lírico reconhece a força física e a coragem:
"Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro. hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


O Sentimento dum Ocidental


Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;


Cristalizações

  • a engomadeira tísica, mulher doente que desperta a revolta, a solidariedade e a emoção do sujeito poético:
(...) Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;

Sofre de faltas de ar; morreram-lhe os parentes

E engoma para fora.


Pobre esqueleto branco, entre as nevadas roupas!

Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.

Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para as sopas...


(...)

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,

Oiço-a cantarolar uma canção plangente

Duma opereta nova!

Contrariedades

  • a hortaliceira "rota, pequenina, azafamada (...), esquedelhada, feia (...), magra, enfezadita" é uma outra figura feminina explorada pela sociedade que suscita no sujeito poético o reconhecimento da energia e coragem necessárias para sobreviver à fatalidade; para além destas características, a hotaliceira, porque é uma mulher do povo e porque traz até à cidade a vitalidade do campo no seu "retalho de horta aglomerada", transmite força aos burgueses citadinos, débeis e doentes - "(...) para o meu emprego, / Aonde agora quase sempre chego / Com as tonturas duma apoplexia" -, de que o sujeito poético é exemplo:
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam dum excesso de virtude,

Ou duma digestão desconhecida.

Num Bairro Moderno

  • a actriz (Tomásia - actriz lisboeta por quem Cesário Verde parece ter nutrido uma grande paixão), que surge a saltitar por entre os trabalhadores "másculos" das obras de uma rua; esta figura ganha, de igual modo, contornos de individualidade ao atravessar a rua onde trabalham calceteiros, distinguindo-se deles pela sua delicadeza e fragilidade:
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;

Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas, fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste Dezembro enérgico, sucinto,

E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,

Eles, bovinos, másculos, ossudos,

Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.


Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa

Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!


Cristalizações

  • a mulher frágil, bela, pura, inocente, pulsando de vida, totalmente desinserida do espaço urbano que condena o sujeito lírico ao vício do álcool ("Eu, que bebia cálices de absinto"); a simplicidade do gesto desta mulher em socorrer um miserável ("E, quando socorreste um miserável"), tem um efeito catártico sobre o sujeito poético que deseja, de imediato, abandonar o absinto e dedicar-lhe a vida:
(...)
A ti, que és bela, frágil, assustada,

(...)
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,

(...)

O teu corpo que pulsa, alegre e brando,

Na frescura dos linhos matinais.

(...)

Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

(...)

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
(...)

E foi, então, que eu, homem varonil,

Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


A Débil

  • a "milady", a "femme fatale", frívola, arrogante, fria, cruel, mas irresistivelmente tentadora suscita no sujeito poético sentimentos tão contraditórios como atracção e desejo de vingança. Quando afirma "é perigoso contemplá-la", reconhece a humilhação a que ela o submete e, numa atitude de intervenção social que caracteriza, aliás, a globalidade da sua poesia. Cesário Verde confere a esta relação pessoal uma dimensão ideológica, anunciando vingança contra a ordem social personificada por "milady":
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;

Como um florete, fere agudamente,

E afaga como o pêlo dum regalo!


(...)


Mas cuidado, milady, não se afoite,

Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,

Para a vingança aguça, os punhais.


Deslumbramentos


Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,

(...)

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,

Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,

(...)


(...)


Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,

Os pegos abismais da minha vida,

E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,

Cheia de dor, tremente, alucinada,

E há-de chorar, chorar enternecida!


E eu hei-de, então, soltar uma risada.


Cinismos

  • a mulher que menospreza o sujeito poético, sendo, no entanto, incapaz de a rejeitar:
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-vos;
E espero-a nos salões dos principais teatros,

Todas as noites, ignorado e só.


Humilhações

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria

Às mesas espelhentas do Martinho.

Arrojos

  • as prostitutas, personagens da noite citadina, relativamente às quais o sujeito poético se posiciona negativamente:
E saio. A noite pesa, esmaga.
Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
(...)

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.


O Sentimento dum Ocidental

  • a mulher natural, espontânea, cuja beleza e sensualidade advêm da sua própria autenticidade - "sem imposturas tolas" - atributos que despertam a atenção do sujeito poético, fascinando-o:
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!


De Tarde

  • a mulher enérgica, quase viril, que se sobrepõe ao sujeito poético:
Parece um "rural boy"! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;

E à roda, num país de prados e barrancos,

Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.


Manhãs Brumosas

  • a mulher lúbrica, que enfeitiça, submete e arrasta o homem para o abismo dos prazeres sensuais:
Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

(...)

Teus olhos imorais,
Mulher, que dissecas,
Teus olho dizem mais
Que muitas bibliotecas!

Lúbrica

Ei-la! Como vai bela!
(...)

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem!

(...)

E eu vou acompanhando-a, corcovado.
No trottoir, como um doido, em convulsões
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.

Esplêndida

  • A mulher velha e miserável marginalizada pela sociedade:
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má, Póe-se na minha frente uma velhinha suja, E disse-me, piscando os olhos de coruja: - Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

Humilhações


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