Deambulando por vários espaços, Cesário Verde oferece-nos uma galeria de figuras femininas com uma individualidade muito própria, que é negada às restantes personagem que povoam a sua poesia (lojistas, carpinteiros...).
Como vê, então, o poeta algumas dessas figuras femininas:
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro. hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Como vê, então, o poeta algumas dessas figuras femininas:
- as varinas, as trabalhadoras genuínas, a quem o sujeito lírico reconhece a força física e a coragem:
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro. hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
O Sentimento dum Ocidental
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar; morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco, entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para as sopas...
(...)
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Cristalizações
- a engomadeira tísica, mulher doente que desperta a revolta, a solidariedade e a emoção do sujeito poético:
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar; morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco, entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para as sopas...
(...)
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Contrariedades
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude,
Ou duma digestão desconhecida.
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
- a hortaliceira "rota, pequenina, azafamada (...), esquedelhada, feia (...), magra, enfezadita" é uma outra figura feminina explorada pela sociedade que suscita no sujeito poético o reconhecimento da energia e coragem necessárias para sobreviver à fatalidade; para além destas características, a hotaliceira, porque é uma mulher do povo e porque traz até à cidade a vitalidade do campo no seu "retalho de horta aglomerada", transmite força aos burgueses citadinos, débeis e doentes - "(...) para o meu emprego, / Aonde agora quase sempre chego / Com as tonturas duma apoplexia" -, de que o sujeito poético é exemplo:
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude,
Ou duma digestão desconhecida.
Num Bairro Moderno
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
Mas, fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!
Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!
- a actriz (Tomásia - actriz lisboeta por quem Cesário Verde parece ter nutrido uma grande paixão), que surge a saltitar por entre os trabalhadores "másculos" das obras de uma rua; esta figura ganha, de igual modo, contornos de individualidade ao atravessar a rua onde trabalham calceteiros, distinguindo-se deles pela sua delicadeza e fragilidade:
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
Mas, fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!
Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!
Cristalizações
A ti, que és bela, frágil, assustada,
(...)
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
(...)
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
(...)
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
(...)
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
(...)
E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
- a mulher frágil, bela, pura, inocente, pulsando de vida, totalmente desinserida do espaço urbano que condena o sujeito lírico ao vício do álcool ("Eu, que bebia cálices de absinto"); a simplicidade do gesto desta mulher em socorrer um miserável ("E, quando socorreste um miserável"), tem um efeito catártico sobre o sujeito poético que deseja, de imediato, abandonar o absinto e dedicar-lhe a vida:
A ti, que és bela, frágil, assustada,
(...)
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
(...)
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
(...)
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
(...)
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
(...)
E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
A Débil
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
(...)
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguça, os punhais.
- a "milady", a "femme fatale", frívola, arrogante, fria, cruel, mas irresistivelmente tentadora suscita no sujeito poético sentimentos tão contraditórios como atracção e desejo de vingança. Quando afirma "é perigoso contemplá-la", reconhece a humilhação a que ela o submete e, numa atitude de intervenção social que caracteriza, aliás, a globalidade da sua poesia. Cesário Verde confere a esta relação pessoal uma dimensão ideológica, anunciando vingança contra a ordem social personificada por "milady":
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
(...)
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguça, os punhais.
Deslumbramentos
Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
(...)
Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
(...)
(...)
Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.
Do meu amor enorme e massacrado,
(...)
Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
(...)
(...)
Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.
Cinismos
- a mulher que menospreza o sujeito poético, sendo, no entanto, incapaz de a rejeitar:
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Humilhações
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
Arrojos
Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
(...)
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
- as prostitutas, personagens da noite citadina, relativamente às quais o sujeito poético se posiciona negativamente:
Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
(...)
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.
O Sentimento dum Ocidental
- a mulher natural, espontânea, cuja beleza e sensualidade advêm da sua própria autenticidade - "sem imposturas tolas" - atributos que despertam a atenção do sujeito poético, fascinando-o:
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
De Tarde
- a mulher enérgica, quase viril, que se sobrepõe ao sujeito poético:
Parece um "rural boy"! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.
Manhãs Brumosas
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
(...)
Teus olhos imorais,
Mulher, que dissecas,
Teus olho dizem mais
Que muitas bibliotecas!
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem!
(...)
E eu vou acompanhando-a, corcovado.
No trottoir, como um doido, em convulsões
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
- a mulher lúbrica, que enfeitiça, submete e arrasta o homem para o abismo dos prazeres sensuais:
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
(...)
Teus olhos imorais,
Mulher, que dissecas,
Teus olho dizem mais
Que muitas bibliotecas!
Lúbrica
(...)Ei-la! Como vai bela!
É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem!
(...)
E eu vou acompanhando-a, corcovado.
No trottoir, como um doido, em convulsões
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
Esplêndida
- A mulher velha e miserável marginalizada pela sociedade:
Humilhações
Sem comentários:
Enviar um comentário